O provérbio diz que “O sol, quando
nasce, é para todos”, mas George Orwell[1]
escreveu que “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que
outros”[2].
Alex tentou disfarçar as lágrimas que
teimavam em querer cair dos seus olhos com uma força incontrolável, ao mesmo
tempo que lutava, de uma forma quase inglória, contra uma avassaladora,
arrebatadora e arrasadora vontade de chorar.
“Não posso chorar” era tudo o que
passava pela mente de Alex “Não posso chorar, ou vão gozar comigo”.
Tinha sido sempre assim: toda a sua
vida, desde que se lembrava de ser gente, aquele sentimento de não só ser uma
peça de puzzle contínua e teimosamente fora do sítio, como também de desesperadamente
querer encaixar, nem que fosse no sítio errado.
O seu nome, Alex, era, à falta de
melhor palavra, apropriado.
Alex, um nome unissexo. Ou sem sexo.
Tal como Alex. Exactamente como Alex.
Literalmente.
Alex não tinha sexo. Nem órgãos genitais,
nem órgãos reprodutores.
Era completa e totalmente assexuado. Ou
assexuada.
Sem género.
A-gender.
A-génos.
Simplesmente tinha nascido assim.
Porquê?
Ninguém sabia.
Alex foi uma criança abandonada à
nascença.
Mas Alex não culpava os pais.
Na verdade, até os compreendia.
Quem iria querer ser pais de uma
criança sem género, sem sexo que a definisse?
Uma criança assexuada – uma aberração
da natureza.
Essa característica – ou falta dela,
dependendo do ponto de vista – tinha regido, ou melhor dizendo, assombrado toda
a sua vida.
Por causa dela, Alex não tinha podido
frequentar a escola.
Tinha tido aulas em casa. Ou orfanato.
Ou lar de acolhimento.
Também nunca família alguma quis
adoptar Alex.
Quer-se dizer, querer, até quiseram.
Houve famílias que até mostram algum interesse. Mas mal tomavam conhecimento da
singularidade muito peculiar de Alex, logo recuavam nesse mesmo interesse.
Enquanto crescia, como forma de
combater a imensa solidão e dor que assolava e corroía Alex, começou a imaginar,
mais do que isso, a sonhar que a sua… excentricidade significava uma evolução,
o aparecimento de uma nova espécie, o passo seguinte da humanidade.
E Alex era o primeiro caso, pelo menos
que se soubesse. Um caso pioneiro.
Mas mesmo isso não impedia Alex de se
sentir a afogar, cada vez mais, nas areias movediças que representavam a sua
existência.
Toda a sua vida se resumia a um grande
ponto de interrogação, enorme confusão, infinita trapalhada.
O seu dia-a-dia era inundado das mais
pequenas coisas que, para qualquer outra pessoa, eram de tal maneira
irrelevantes, que se tornavam praticamente insignificantes. Por exemplo, sempre
que tinha que preencher um qualquer formulário, quando chegava à famigerada
questão sobre o sexo, paralisava: e agora, feminino ou masculino, já que estas
eram as únicas hipóteses?... Também sempre que Alex tinha que ir a uma casa de
banho pública, coisa que evitava ao máximo, parecia que o tempo ficava
suspenso: homens ou mulheres?
Chegou ao ponto de Alex invejar, mas
invejar a sério, todos os homens e todas as mulheres: esses sabiam quem eram,
pelo menos a nível de género. Neste sentimento de inveja, Alex incluía também
os transsexuais, pois esses também sabiam quem eram: podiam ter nascido no
corpo errado, mas tinham consciência disso.
Mas Alex não tinha sexo. Era superior a
isso. Ou inferior. Provavelmente inferior.
E então, a inveja. Mas não era uma
inveja malévola. Não, era antes uma inveja… passiva.
Mas havia um pequeno grupo de pessoas
de quem Alex não sentia inveja. Não, por esses sentia antes outra coisa:
empatia. Os hermafroditas. Esses também deviam sentir o mesmo que assolava
Alex. Só que, ao contrário de Alex que não tinha género, os hermafroditas
tinham os dois, masculino e feminino.
Alex não tinha amigos. Nunca tinha
tido.
Na infância, quando mais tinha
necessitado e procurado, sempre o tinham perentória e ferozmente afastado,
quiçá devido à sua… diferença.
Essa crueldade e indiferença ficaram
gravadas a ferro e fogo na sua alma, de tal maneira que nunca mais Alex se
atreveu a procurar qualquer outra forma ou tipo de contacto humano.
Desenvolveu uma espécie de carapaça,
uma armadura, para defesa dos golpes que ainda tinha que enfrentar.
Uma das coisas que mais assustava Alex
eram os pesadelos que teimavam em fazer-lhe visitas, sempre e cada vez mais
indesejadas.
Quando Alex estava mais à mercê de quem
ou o quer que fosse e sem quaisquer hipóteses de defesa, os pesadelos apareciam,
saltando, sem apelo nem agravo, de sabia-se lá de onde.
Sempre à noite, quando Alex conseguia
finalmente adormecer. Parecia de propósito: sabiam sempre quando Alex estava
mais vulnerável e aproveitavam-se dessa mesma vulnerabilidade, ao mesmo tempo
que se divertiam.
E Alex voltava a ver e a sentir o que
tanto se esforçava para esquecer: os risos, os olhares de troça, os cochichos…
Alex também sonhava, mas não se atrevia
a partilhar os seus sonhos.
Sonhava com um mundo mais tolerante,
onde a diferença não fosse sinónimo de ostracismo.
Um mundo onde todos pudessem caminhar
lado a lado.
Um mundo onde imperasse o respeito pela
individualidade de cada um.
Anos mais tarde, soube que Alex começou
apenas por ser um diminutivo carinhoso que os seus pais lhe chamavam, antes do
nascimento.
Como os pais não pretendiam saber se ia
ser menino ou menina, chamavam-lhe Alex, que tanto dava para um lado, como para
o outro.
Alex: Alexandre ou Alexandra.
Mas eis que chega a hora do parto chega
e Alex nasce, uma criança recém-nascida pronta e cheia de vontade de gritar
“olá, cheguei” ao mundo.
E agora, Alexandre ou Alexandra?
Bem, na verdade, nem uma coisa, nem
outra.
Alex, apenas Alex.
Nem menino, nem menina.
Apenas uma… coisa.
Uma coisa cor de burro quando foge.
Sem comentários:
Enviar um comentário