Vertigem. Respirar fundo. E esperar.
Esperar pelo apito, pelo maldito apito. Para
tudo começar. Outra vez.
Os pontapés, a dor que de tão insuportável se
tornava praticamente inexistente, perfeitamente olvidável e completamente
ultrapassável. E se das primeiras vezes que aquilo lhe tinha acontecido, ainda
se tenha perguntado porquê, agora já não fazia isso: já sabia melhor.
Todas as semanas ela experimentava a mesma...
mesma... selvajaria, verdadeira brutalidade, autêntica tortura e desmedida
agonia.
E no entanto, ela sentia-se algo parecido com
feliz, completa e realizada: é que assim, não obstante as mazelas, havia um
propósito, um intuito e uma finalidade.
Ela era precisa.
E também amada. Sim, ela sentia-se amada, pois
ela bem sentia a imensa satisfação das pessoas e ouvia os gritos de deleite e
prazer, suprema alegria.
É claro que também ouvia alguns impropérios e
injúrias, mas já lhe tinham explicado que nada daquilo lhe era dirigido, mas
sim aos outros intervenientes.
Quem lhe tinha explicado foi uma velha
veterana daquelas andanças, ainda antes da primeira vez dela, quando se
apercebeu de que ela era caloira, a estrear.
Mas mesmo com aquelas explicações todas, nada
a podia preparar para o primeiro embate, o primeiro pontapé. E como ela era
redonda, a dor, aquela dor agonizante, parecia que rodava dentro dela,
atingindo-a em toda a sua plenitude.
Agora, já sabia o objectivo final daquilo,
aquele jogo a que chamavam futebol, verdadeiro rastilho de paixões: metê-la a
ela, bola, com os pés ou com a cabeça, dentro daquela coisa rectangular e
rodeada de redes, com um homem a guardá-la, por vezes a fazer figuras muito
tristes.
O que nem sempre acontecia.
Não obstante as inúmeras e frenéticas
tentativas.
Na verdade, ela quase que sentia pena dos
jogadores; mesmo apesar dos pontapés, a empatia era inevitável. Era como se
ela, a bola, e eles, os jogadores, fossem um só. Pelo menos, durante o tempo do
jogo.
Que estava mesmo a começar.
O árbitro ia apitar e novamente ela sentiu uma
vertigem.
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