(versão
revista e actualizada do conto “Verão alentejano”, da minha autoria,
concorrente ao Prémio Literário //DO MOSTO À PALAVRA 2017//, uma iniciativa da
Chiado Editora e posteriormente incluído no livro “Do mosto à palavra, volume I
– Colectânea de Prosa e Poesia sob a temática: Alentejo” - Chiado Editora, Novembro/2017)
E
|
sta
noite voltei lá.
Em
sonhos, é certo, mas voltei.
Àquele
Verão, o NOSSO Verão.
E
fomos felizes, tão felizes… tão, tão absurda,
intensa e plenamente felizes…
Conheces
aquela expressão da língua inglesa, Indian
summer, ou seja, Verão indiano?[1]...
Pois bem, nós tivemos antes o nosso Verão alentejano.
Lembras-te?
Tinha
15 anos e estava de férias, as chamadas férias grandes. Estava a passar o Verão
na casa da minha tia Natália irmã mais velha da minha mãe, que morava em
Santiago de Cacém. Mas os meus companheiros de aventuras foram os meus primos
Jonas e Elias, mais velhos do que eu e que já tinham carta de condução e que,
como tal, passaram o Verão a levarem-me, a prima caçula, a tudo o que era
sítio.
A
primeira memória que me assalta é o azul profundo do mar. Eu sei que
habitualmente, quando pensamos no Alentejo, o mar não é, propriamente, a
primeira coisa que nos vem à lembrança.
Mas
a mim, é.
Nomeadamente,
o mar das praias das Costas alentejana e Vicentina[2].
Lembro-me
principalmente da praia onde costumávamos ir, da “nossa” praia, a Lagoa de Stº
André. O que eu mais gostava dessa praia era a sua amplitude. Junto ao mar, o
areal era extenso e depois havia a lagoa, também com um grande areal. E ainda
havia as dunas. Resultado: por muita gente que estivesse a praia, nunca se
sentia a mesma sobrelotada. O que para mim era óptimo, pois eu nunca gostei de
muita gente junta: parece que me falta o ar, que não consigo respirar.
E
por falar em Lagoa de Stº André, lembras-te de que os meus primos quase que me
“obrigaram” (entre aspas, claro está, pois eles obrigaram-me a coisíssima
nenhuma) a acampar com eles, na Lagoa de Stº André, durante uma semana? Apesar
de Santiago do Cacém ficar bastante perto, os meus primos diziam que só assim
eu podia usufruir da experiência completa que a Lagoa de Stº André
proporcionava. Convencida de que tudo aquilo não passava de paleio dos meus
primos para eles poderem estar com as namoradas à vontade, mas mesmo assim não
me importando absolutamente nada com isso, lá acabei por concordar. E acabei
por lhes dar razão. O parque de campismo ficava mesmo junto à lagoa e durante
uma semana adormeci com o coaxar das rãs e acordei com o chilrear dos pássaros.
Quanto à história das namoradas, eu até tinha razão, se bem que só
parcialmente: efectivamente a Vera e a Ana (namoradas do Jonas e do Elias,
respectivamente) foram lá ter connosco, mas iam e vinham todos os dias – a
Vera, de Santiago do Cacém, a Ana, de Vila Nova de Stº André. Iam e vinham de
autocarro quase todos os dias, excepto numa ocasião: quando o Jonas e o Elias
as foram buscar. Mas nem pensem que os meus primos me deixaram sozinha na
praia: não, eu fui com eles, praticamente atrelada, E se passa pela cabeça de
alguém que eu fui negligenciada nessa semana, bom, não podiam estar mais
enganados: contrariamente às minhas expectativas, os meus primos e as
respectivas namoradas sempre me acolheram de braços abertos no grupo deles,
fazendo-me sentir alguém importante, igual… fazendo-me sentir bem. Se bem que
eu nunca percebi que interesse eu podia ter, uma simples rapariga de 15 anos.
Olhando para trás, tenho quase a certeza que o que os atraia era a minha
ingenuidade e a minha vontade e disponibilidade de aprender. E eu aprendi. E
apreendi.
Também
me lembro da praia de Porto Covo, das suas praias entaladas entre as falésias e
do seu casario. Quando primeiro visitei essa praia, foi ainda na era pré-Rui
Veloso.[3] Ou
seja, quando a conheci ainda se resumia à praça central e só mais algumas
casas. E as praias ainda nem sequer eram vigiadas.
Ou
da praia de São Torpes, logo a seguir a Sines e com as suas águas quentes, à
sombra (por assim dizer) da Central Termoeléctrica de Sines.
Ou
da praia do Almograve, com a placa evocativa do desastre ambiental que ali
ocorreu[4].
Ou
da praia de Vila Nova de Milfontes, tão cheia de veraneantes, que eu me lembro
de pensar: “Se isto é assim a uma Quarta-feira em Julho, nem quero pensar num
Domingo em Agosto.”
Ou
da praia da Zambujeira do Mar, ainda muito antes da existência do Festival do
Sudoeste[5].
Mas se a memória não me falha, naquele dia em particular, decorria naquela
praia mais uma eliminatória do popular concurso “Construções na Areia”,
iniciativa do jornal “Diário de Notícias”.
Ou
da praia de Odeceixe, na fronteira entre o Alentejo e o Algarve.
Ou
da praia da Arrifana, já no Algarve.
Lembro-me
ainda de ir ao Cabo Sardão. Na altura, ficava lá perdido no meio de mato e para
lá ir só havia estradas de terra batida.
De
Odemira, já não me lembro muito bem: de algumas casas brancas, do Rio Mira e
pouco mais. Talvez porque, se a memória não me falha, só passámos ao lado, não
entrando na povoação.
Mas
de Grândola, já me lembro. Lembro-me do monumento a “Grândola Vila Morena”[6],
do calor abrasador, de não se ver vivalma e de eu pensar que os alentejanos é
que a sabiam toda.
Por
falar em calor, lembras-te daquela tarde em Santiago do Cacém, quando fazia um
calor tão tórrido, tão sufocante, que não só parecia que o simples acto de
respirar nos queimava por dentro, como o ar que nos rodeava nos pesava,
fazendo-nos custar dar um só passo que fosse? Sei que tivemos que entrar num
qualquer café, por duas razões: para fugir ao calor ardente e torturante, e
para beber qualquer coisa que pudesse matar a sede e refrescar. Já não sei
muito bem o que bebi (7up… ou Sprite…)¸ mas fosse lá o que fosse, o
que eu sei é que nunca uma bebida fresca me soube tão bem.
Ou
ainda quando os meus primos fizeram questão de me mostrar as ruínas romanas de
Miróbriga[7].
Também
me lembro de estar em Sines, junto à igreja[8] e
à estátua de Vasco da Gama[9], junto
ao castelo, com vista para a praia. Aliás, foi por causa da estátua que eu
soube que o dito cujo tinha nascido em Sines.
E
daquela vez que fomos passear para o interior, lembras-te? Eu lembro-me das
retas a perder de vista, dos chamados quilómetros alentejanos que nunca mais
acabavam…
Em
Alter-do-Chão, já bem perto da hora de almoço, lembras-te de quando o meu primo
Elias se dirigiu a um velhote que parecia ser dali e lhe perguntou se sabia
indicar algum restaurante para almoçar?...
Eu
lembro-me da resposta do velhote, que pregou um sorriso aos meus lábios e me
fez gargalhar para dentro, enquanto que o meu primo Jonas teve que morder os
lábios com força para não se desmanchar a rir: “Há este, mas como eles só
servem migas e eu já estou farto de migas, é melhor irem àquele”.
Ou
ainda quando fomos a Évora. Estávamos a ver o Templo romano de Évora,
vulgarmente conhecido como o Templo de Diana[10],
quando ouço um chocalhar. Ao ouvir aquele som, pensei logo: “Cabras? Em plena
cidade de Évora?” Mas não. Qual não foi a minha surpresa quando vejo que é um
homem (provavelmente um turista, a julgar pela indumentária) com um chocalho…
ao pescoço!
Ainda
em Évora, fiz questão de ir à Capela dos Ossos[11],
na Igreja de São Francisco. Já tinha ouvido falar de pessoas que se tinham
sentido mal, de tão impressionadas que ficaram. Mas a mim não me fez a mínima
mossa. Do que me lembro bem é daquele homem que já estava um tanto ou quanto
“alegre” e que quando leu a frase à entrada da capela, “Nós ossos que aqui
estamos pelos vossos esperamos”, deu em rir histericamente. Resultado: foi
prontamente convidado a sair.
Estas
memórias assaltaram-me esta noite em sonhos.
Mas
quero voltar.
Voltar
a passear em ti, mergulhar em ti…
Voltar
a ti.
[1] Em
Portugal, a correspondência mais próxima será, talvez, o Verão de São Martinho
[2] Parque
Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina – litoral sudoeste de
Portugal, entre a ribeira da Junqueira, em São Torpes, e a praia do Burgau
[3] Autor e
intérprete da canção “Porto Covo” (álbum “Rui Veloso”, 1986)
[4] Em 1989
houve um derrame de petróleo, consequência do acidente com o navio Marão
[5] Festival
de música, que costuma ocorrer na 1.ª semana de Agosto
[6]
Canção interpretada por Zeca Afonso, que serviu de 2.ª senha [Partida] ao
movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos (a 1.ª
senha [Preparar] foi a canção “E depois do adeus”, interpretada por Paulo de Carvalho)
[7] Miróbriga
(Mirobriga Celticorum) é uma antiga
cidade romana, situada perto de Santiago do Cacém.
[8] Igreja
Matriz
[9]
Navegador e explorador português. Distinguiu-se através da descoberta do
caminho marítimo para a India, entre 1497 e 1499 (n. 1469 – m. 1524)
[10] Deusa
romana da caça
[11]
Edificada no século XVII por iniciativa de três frades franciscanos, cujo
objectivo era transmitir a transitoriedade e fragilidade da vida humana
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