Era assim que o costumavam
chamar, “Dez réis de gente”, e de tanto o chamar assim, já se tinham esquecido
do verdadeiro nome dele.
“Dez réis de gente”.
Dele, pouco ou nada se
sabia. Apenas que num dia igual a tantos outros tinha aparecido vindo de não se
sabia onde.
Por mais que lhe
perguntassem quem ele era e de onde vinha, não respondia: não sabia, era como
se tivesse aterrado ali por engano. Só sabia dizer o nome por que era chamado,
mas até esse, já tinha passado à história. Agora, só sabia que era o “Dez réis
de gente”.
Qual João, Tiago, Pedro ou
António, qual carapuça!
“Dez réis de gente”.
Para o melhor e para o
pior, “Dez réis de gente”.
Para tudo e para todos,
“Dez réis de gente”.
Aqui e mais além, “Dez
réis…
...
JÁ CHEGA! Já percebemos a ideia. “Dez réis de gente”, não é verdade?...
Mas,
mas… quem fala?
(risos)
Sou eu, sua cabeça de andorinha.
Eu,
quem?
A
tua criação.
Minha
criação?!...
Pois…
Não és tu que estás a escrever esta história?
Sim,
sou eu.
Então,
pronto. Isso faz de mim a tua criação.
Sendo
assim, tu és…
Exactamente.
O “Dez réis de gente”.
Mas,
mas… como?
Ai,
isso já não te sei dizer. Só sei que estou aqui.
Pois,
isso também eu vejo… ou melhor, oiço. E a que devo a honra, podes-me dizer?
Simples.
Avança lá com a história, que já ficou bem esclarecido que eu sou o “Dez réis
de gente”.
De maneira a juntar alguns
tostões que lhe permitissem a sobrevivência, “Dez réis de gente” dedicava-se a
ser um espécie de faz-tudo: tudo o que fosse preciso ele fazer, ele fazia: um
verdadeiro mestre na arte do desenrascanço.
Eram várias as vezes em
que se tinha de ausentar por alguns períodos de tempo, mas como não tinha
ninguém a quem se justificar, não havia problemas.
Foi durante uma dessas
ausências que um senhor todo bem-falante, perfumado e engravatado apareceu na
vizinhança, à procura de um tal de Bernardo Assis.
Bernardo Assis?... Não,
não conheciam.
De certeza?... O tal
senhor parecia mesmo desapontado. Tinham-lhe garantido que era por ali que ele
costumava parar.
Ná, por ali não havia
ninguém com esse nome, Bernardo Assis.
A não ser…, alguém
começou.
Sim?, o senhor perguntou
esperançado. A não ser?...
O “Dez réis de gente”.
“Dez réis de gente”?
Sim, ninguém sabia quem
ele era, nem sequer o nome. E alguém ele tinha que ser, tinha que ter algum
nome.
Também era correcto:
estava bem visto, sim senhor.
Ah,
não! Nem pensar!...
O
que foi agora?
Bernardo?...
E eu lá tenho cara de Bernardo?
(suspiro)
O que é que tem Bernardo?
Nada.
Eu até gosto do nome.
Mas…?...
É
que eu me imaginava mais como um Frederico. Ou Dinis.
Está
bem, mas as coisas não são como tu imaginas. São como eu escrevo.
Olha-me
bem só para isto, já a pulga tem catarro…
Cala-te!
Cala-te, que é bem melhor…
Só que ninguém sabia dizer
por onde o “Dez réis de gente” parava.
Ele às vezes tem desta
coisas, sabe?..., alguém começou a explicar. Passavam-se dias sem ninguém lhe
pôr a vista em cima.
E a casa dele?, o senhor
perguntou.
Toda a gente se
entreolhou: a casa dele?...
Pois, onde ele morava…
As pessoas ficaram
envergonhadas, como se alguém as tivesse apanhado em flagrante. Nunca se tinham
lembrado disso: onde é que o “Dez réis de gente” morava. Ele simplesmente
estava.
Ninguém sabia. Ninguém
sabia onde ele morava.
Mas
que raio?!?...
Ai,
a minha santa paciência!... O que é que tu queres?
O
que é que eu quero?! Quero que tu desenvolvas a história, homessa! Estás aí
nesse chove, não molha, chove, não molha… Vá, vá, vá: andor, andor…
Olha
que essa está muito boa, sim senhor: mas quem é que está a escrever esta
história, sou eu ou és tu?
És
tu. E é por isso mesmo que te posso dizer: a culpa de eu me ver nestes assados,
é da tua exclusiva responsabilidade.
Como
é que é?
Ah,
pois: não tenho nome, não tenho casa e ando desaparecido.
Ah,
não me chateies, está bem?... Olha, sabes o que é que podias fazer?
O
quê?
Desempatar-me
a loja.
Hã?...
O tal senhor bem-falante,
perfumado e engravatado foi-se embora, sem conseguir o que queria.
E do “Dez réis de gente”
também nunca mais se soube. Tão misteriosamente como tinha aparecido… tinha
desaparecido.
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