Isto é uma história de Verão.
De um qualquer Verão.
De um qualquer mês quente de Agosto.
O ar estava quente, abafado, pesado,
colava-se à pele.
Sol de trovoada, uns diziam.
Mas o céu teimava em manter-se limpo e o
Sol, todo–poderoso, reinava sem oposição.
Em frente ao espelho, Cláudia olhava-se.
Admirava-se.
Era bonita e sabia-o.
O corpo bem delineado pelo fato de banho
aos quadradinhos brancos e pretos, o cabelo pelos ombros castanho-escuro
brilhante, o rosto com feições perfeitas de onde sobressaiam dois faróis
negros, um tom dourado a cobrir-lhe a pele.
Sentiu-se vaidosa com toda a vaidade
permitida pelos seus 17 anos e tinha toda a razão para isso.
“Cláudia” uma voz chamou, a mãe
“Despacha-te”
“Vou já” e Cláudia apressou-se a vestir
a T-shirt Benetton sobre o fato de banho.
Os pais e o irmão mais novo já estavam à
espera e Cláudia voou pelas escadas abaixo da casa alugada.
Na praia Cláudia olhou num misto de pena
e inveja para as outras raparigas que se passeavam nos seus biquinis e um par
de olhos negros suplicantes pousaram-se na figura com barriga de cerveja do
pai.
“Podes tirar o cavalinho da chuva” ele
começou “que não compras nenhum biquini. Pelo menos enquanto comeres do comer
que eu pago”
Cláudia suspirou resignada, mas não
evitou um pensamento «Bota de elástico».
Mas porque é que o pai dela não era
assim como os outros pais? Porque é que ele era tão, tão... antiquado?
Com uma cara de amuo ela tirou a T-shirt
Benetton e começou a espalhar protector solar pelo corpo, em movimentos
vagarosos.
“Irra” exclamou o pai “Mas mesmo certo
isso ainda é preciso?... Se tu já estás queimada, para que é que são essas
mariquices todas, sabes-me dizer?”
Cláudia apenas olhou para o pai, sem
dizer uma palavra: lá por ela já estar queimada, isso não queria dizer nada.
Ela lia as revistas, ela via televisão, ela sabia: o sol era muito bom, mas
também podia ser muito perigoso e como o seguro tinha morrido de velho e a
prudência ainda lhe tinha ido ao enterro, Cláudia preferia prevenir para não
ter que remediar.
“Só está bem é a untar-se, só está bem é
a untar-se...” ainda disse o pai.
“Mana” o irmão mais novo, Nuno “Quero ir
ao banho. Anda comigo”
“Oh Nuno” Cláudia parecia aborrecida
“Não me apetece”
“Ó pá” Nuno insistiu “Anda lá. Sabes que
não posso ir sozinho”
“Mas tu mesmo certo não podes passar sem
ir uma vez que seja ao maldito banho?” Cláudia estava mesmo aborrecida.
“Cláudia Isabel” a voz zangada do pai
“Vais com o teu irmão, e é já”
“Está bem, está bem” Cláudia abriu muito
os olhos “Não é preciso gritar”
Nuno correu para a beira-mar, e Cláudia
seguiu atrás, devagar.
Enquanto
Nuno aparecia e desaparecia nas ondas que vinham morrer à praia, os olhos de
Cláudia saltavam de pessoa em pessoa, farol de ilha em ilha.
Mas uma ilha a luz focou e por ali
ficou: uma ilha alta, máscula, loura.
«Um borracho» Cláudia pensou.
Ele estava ali parado a olhar, mas
também a ser olhado e, Cláudia apostava, ele sabia-o.
Até que o olhar dele encontrou-se com o
dela.
Ele sorriu, ela envergonhada corou e
apressou-se a afastar o olhar.
“Olá” o coração de Cláudia deu um pulo:
era ele.
“Olá” ouviu-se Cláudia dizer.
“Como te chamas?” ele perguntou.
“Cláudia” o olhar dela continuava fixo
no mar “E tu?”
“Sérgio”
Cláudia olhou-o fixamente, mas nada
disse.
Teve que ser ele a rasgar o véu de
silêncio que caia suavemente “Estás aqui de férias?”
“Estou. E tu?”
“Não. Só de fim-de-semana”
“Sozinho?”
“Pois claro. Tu não?”
“Quem dera” Cláudia suspirou “Estou com
os meus pais e com o meu irmão”
“Mais novo ou mais velho?” Sérgio quis
saber.
“Mais novo”
O olhar de Sérgio perdeu-se no mar e
Cláudia pode estudá-lo melhor: o perfil fazia curvas harmoniosas, montanhas que
apetecia escalar, os olhos claros, lagos onde apetecia mergulhar, o peito
másculo um deserto onde apetecia perder, para se encontrar no oásis da sua
boca.
«Cruzes» Cláudia abanou a cabeça, como
que a acordar de um sonho «Que pensamentos»
Ela estava assustada com aquilo que
sentia crescer dentro de si. Ela mal conhecia o rapaz, por amor de Deus!...
Devia ser o calor, sim, devia ser isso – já tinha ouvido dizer que o calor, por
vezes, dava a volta à cabeça e pelos vistos era verdade.
“O que é que fazes hoje à noite?”
Cláudia assustou-se: estava tão
envolvida nos seus pensamentos, que quando Sérgio falou foi como se a forçassem
a voltar ali – e no entanto, era ali que ela queria estar.
“O que é que fazes hoje à noite?” ele
repetiu.
“Hoje à noite?” Cláudia parecia um eco,
sem saber que mais dizer.
“Sim, hoje à noite”
“Não – não sei” Cláudia balbuciou
“Porquê?”
“Oh, estava a pensar se não gostarias de
ir dar uma volta comigo, depois do jantar. Isto é” Sérgio apressou-se a dizer
“Se puderes”
Cláudia abriu muito os olhos: ele estava
a convidá-la para sair, não estava?
“Adorava ir” Cláudia disse num sopro
“Mas há um problema”
“Problema?” Sérgio franziu o sobrolho.
“Sim. O meu irmão”
“O teu irmão?”
“Sim. Tenho a certeza de que o meu pai só
me vai deixar sair se o meu irmão for também”
“Ah sim? E quantos anos tem o teu irmão?”
“11” Cláudia olhou receosa para Sérgio,
como que a temer a reacção dele.
Mas em vez de ficar aborrecido ou outra
coisa assim, Sérgio sorriu “11 anos?”
Cláudia confirmou com a cabeça.
“Não te preocupes, alguma coisa se há de
arranjar. Olha” o sorriso de Sérgio rasgava-lhe o rosto de orelha a orelha
“Tenho a solução ideal”
“Hã?”
“Ouve, está cá um circo, vi-o há bocado”
e continuou “Esta noite, depois do jantar, dizes que vens com o teu irmão ao
circo. Ele gosta de circo, não gosta?”
“Gosta”
“Pois bem, vais com ele ao circo, que eu
depois vou lá ter contigo”
“Está bem” a voz de Cláudia tremeu de
excitação e ficou parada a olhar para Sérgio que se afastava.
“Mana”
“Hã? O quê?”
“Mana” era Nuno “Já fui ao banho.
Podemos ir embora”
“Nuno” Cláudia começou, passado um
bocado “Hoje à noite há circo. Gostavas de ir?”
“Podes crer” os olhos de Nuno
iluminaram-se, para logo a seguir se ensombrarem “Mas não posso”
“Essa agora” Cláudia exclamou “E porque
não?”
“Tu não vais comigo. Tu nunca vais”
“Vou”
Nuno olhou para ela, a alegria e a surpresa estampadas no
rosto.
“Vais?”
“Vou”
“Mas vais mesmo?”
“Vou”
“De certeza?”
“Absoluta”
“Sintética?”
“Analítica”
E pronto! Não foi preciso mais nada: Nuno desatou a correr
para os pais a contar-lhes a novidade.
Cláudia não conseguiu evitar uma pontinha de culpa: era
verdade que nunca saía com o irmão – ele às vezes era tão chato, um empecilho:
era irmão mais novo, e estava tudo dito! – e se não fosse este encontro
escondido com Sérgio, também não era desta.
Ela chegou ao pé dos pais e do irmão.
“Então, menina” começou o pai “já sei que esta noite vais com
o teu irmão ao circo”
“Sim” Cláudia confirmou.
“Filha” a mãe largou a renda “isso é bom, muito bom”
“É” disse o pai “parece que finalmente estás a criar algum
juízo. O que já não era sem tempo” e voltou a afundar-se nas páginas do jornal
desportivo. Mais não disse.
A mãe também não disse mais nada: voltou a pegar na renda,
naquela toalha de renda que Cláudia sempre se lembrava da mãe estar a fazer,
promessa para o seu enxoval.
Cláudia seguiu-lhes o exemplo, e também ficou calada: teve
medo de que se falasse, os pais iriam perceber que algo se passava.
O resto da tarde correu lenta, muito lentamente: até demais,
no pensar de Cláudia.
De minuto a minuto ela olhava para o relógio, como se assim
os ponteiros pudessem andar mais depressa.
“Mas o que é que tu tens?” às tantas o pai perguntou.
“Eu?” a voz de Cláudia tremeu um pouco.
“Sim, tu” e o pai continuou “Volta na volta estás a olhar
para o relógio”
“Não é nada” Cláudia apressou-se a dizer.
Já
na casa, Cláudia fugiu para o seu quarto.
Tinha que ter cuidado, ou ainda estragava tudo.
Mas a noite tão esperada chegou, e Cláudia apressou-se a
vestir-se. Queria estar no seu melhor. O vestido branco realçava-lhe a cor da
pele, mas o preto era melhor para sair à noite: diluía-se mais.
Escolheu o preto: um vestido curto, justo, que lhe moldava o
corpo.
Era melhor levar também um casaco, não fosse o pai dizer
alguma coisa.
Enquanto se penteava e dava os últimos retoques, lembrou-se
de repente de uma coisa: o perfume! Tinha que pôr um bocadinho, era imperdoável
se o não fizesse. Como era mesmo aquela
frase de Coco Chanel?... Ah, sim, «pôr perfume onde gostaria de ser beijada».
Bem, é claro que Cláudia gostava de ser beijada na boca, mas pôr perfume nos
lábios?... Só um bocadinho...
Agora estava pronta.
“Até que enfim” Nuno tinha a impaciência na voz “Estava a ver
que nunca mais”
“Não estamos atrasados” sossegou-o Cláudia.
“Só que eu quero sentar-me à frente e se calhar já não há
lugares”
“O Nuno tem razão” a mãe disse “É melhor irem”
“Vamos, vamos” Nuno quase que empurrava a irmã “Até logo”
“Até logo” acenou Cláudia “E tu não me empurres” disse para o
irmão.
“Até logo” disse a mãe.
“Até logo” falou o pai sem levantar os olhos do jornal “E
juízinho” ainda gritou.
Na rua, Cláudia ia com o irmão pela mão: ela em silêncio, ele
a falar coisas que se perdiam na noite, coisas sem qualquer importância.
No circo já estava muita gente, mas ainda havia alguns
lugares à frente.
“Vai-te sentar lá à frente” disse Cláudia para o irmão “que
eu fico aqui atrás”
“Está bem” e Nuno correu para se sentar.
Cláudia estava nervosa. Olhava para todo o lado e não havia
maneira de Sérgio aparecer. Oh!, mas é claro, devia ser isso mesmo: ele devia
estar à espera que o espectáculo começasse, para depois vir ter com ela. Era
isso de certeza, só podia.
O espectáculo começou. Agora é que ele ia aparecer. Só que de
Sérgio, nem sombra.
O intervalo chegou e de Sérgio nada. Mas aonde é que aquele
gajo poderia estar? Será que ele estava a gozar com ela, estava? Se sim, ela
não se estava a rir.
A segunda parte do espectáculo. Ó pá, Cláudia já se estava a
passar dos carretos. Aquele tipo não aparecia. Assim não valia. Se ele fosse
para a merda...
O espectáculo acabou.
“Ena mana” Nuno pulava “Foi muita giro, não foi?”
Cláudia nada disse.
“Eh, mana” Nuno puxou-lhe pela manga do casaco “Estás a
ouvir?”
“Hã? O quê?... Se foi giro?... Foi, foi muito giro” Cláudia
estava furiosa, mas teve que fingir para o irmão não perceber – sim, porque ele
podia ser uma criança, mas de parvo não tinha nada.
Aquele... aquele... estúpido, monte de merda, analfabruto,
tinha-a deixado especada! Tinha-lhe dado – como é que se diz? – uma tampa! Ai,
que raiva...
Em casa atirou um “Boa noite” aos pais, e apressou-se a
meter-se na cama. Aquele cabrão, ordinário... (só miminhos)...
Pois é! Esta história de Verão acaba aqui. O que vocês
queriam e estavam à espera sei eu, mas olhem, enganei-os. Se querem que a
história acabe de outra maneira, têm bom remédio, escrevem-na vocês.