domingo, 25 de novembro de 2012

Maria Lia

(Agora, temos a 6.ª parte do meu projecto, “Sete para sete”.)



                                                               “Maria Lia”
(Sexta-feira)

Lembras-te dela?

De quem?... Da Maria Lia?... Então não haveria de me lembrar... Não me lembro eu de outra coisa... Até parece que foi ontem...

É... Parece mesmo... Quantos anos é que achas que ela tinha?

Quando?... Quando aquilo tudo aconteceu?

Pois.

Sei lá... Para aí uns quinze, dezasseis... Mais não deveria ser...

És capaz de ter razão...
Mas olha que ela, a Maria Lia, era qualquer coisa, não achas?... Bonita como ela só...

Olha lá, desculpa que te diga, mas bonita, bonita, na minha opinião a Maria Lia não era. Também não era feia, isso é verdade, mas também não era nada por aí além... Havia muitas muito mais bonitas e tu sabes. A Maria Lia... não sei... tinha era alguma coisa... não sei o quê... que a tornava especial, diferente das outras. Assim a modos que uma espécie de encanto.

Ou encantamento.

Sim, isso com certeza que deve estar mais perto da verdade... Pelo menos, a avaliar pelo número de rapazes embeiçados por ela que, como tu muito bem sabes, eram mais que muitos.

Pois eram... E isso é que punha todas as outras doentes, piores que más.

Mas verdade seja dita, a Maria Lia nunca passou cartucho a nenhum. Nunca lhes ligou.

Até chegar o filho do Rodrigues...

É... Até chegar o Armandinho...

Ainda hoje estou para saber o que é que deu na mioleira da Maria Lia para se tomar de amores logo por aquela peça...

És tu e eu... O gajo era bem mais velho que ela, não era?

Então, não era!... Se as contas não me falham, o tipo já devia ter passado dos 30... Portanto, o Armandinho devia ter o dobro da idade da Maria Lia, mais ano menos ano...

E olha que não foi à falta de aviso... Ainda me lembro de toda a gente avisar a Maria Lia para tomar cuidado com o Armandinho, que aquilo não era boa rês... Mas ela, está quieta!, orgulhosa e teimosa como ela só, não quis saber de nada nem ninguém: a tudo e todos fez ouvidos de mercador.

É verdade... Ainda me lembro do dia em que o Armandinho chegou, acabadinho de sair da choça.

Quanto tempo é que ele esteve dentro?

Para aí uns três ou quatro anos... Sei que ele tinha sido condenado por roubo, isso sei.

Mas ele não disse sempre que estava inocente, que não tinha sido ele?...

Pois, pois... Está bem, está... Eu vou fingir que acredito...

Queres então dizer que não acreditavas quando ele dizia que não tinha sido ele?

Acreditar?!... Pois claro que não!... Como é que eu podia?... Se o gajo foi apanhado com a mão na massa!...

Eu também sei disso tudo... Mas olha que ele sempre disse que aquilo tudo tinha sido armado para o tramarem...

Isso era o que ele dizia, mas o que ele dizia não se escrevia... Nunca ouviste dizer que vozes de burro não chegam ao céu?... E depois, quem é que alguém no seu perfeito juízo podia acreditar nele?... Não te lembras do Armandinho quando era puto?... Um estróina do pior, mau como as cobras!...

Eu lembro-me... Tão mau, tão mau, que até matou a mãe de desgosto.

Pois foi... Pobre Berenice... Merecia melhor sorte que aquela encomenda de filho...

Mas olha que o Rodrigues também não facilitou a vida ao filho...

Ah, pois não!... E podes crer que cada surra aplicada no Armandinho foi bem aplicada, ó se foi...

Ele estava na prisa quando o velho morreu, não estava?

Estava, estava...

E lembras-te se o Armandinho esteve no funeral do pai?

Esteve... Eles na prisão deixaram-no vir... Parece eu que o estou a ver: todo vestido de preto, no cemitério, com dois guardas, um de cada lado, a chorar... a chorar!... Bah...

Então, e o que é que isso tem?... Afinal, sempre era o pai dele, era normal que chorasse...

O Armandinho?... Chorar?... Só se fossem lágrimas de crocodilo... Ó pá, vai por mim quando te digo, o que o Armandinho mais queria era ver o pai pelas costas... E se fosse com uns palmos de terra por cima, ainda melhor!...

Irra, que tu não gostavas mesmo nada do Armandinho, pois não?...

E havia alguma coisa para gostar?... Mais a mais depois do que ele fez à Maria Lia...

É verdade... Pobre Maria Lia... Mas também, vamos lá a falar verdade, aqui que ninguém nos ouve, a culpa não foi só do Armandinho...

Ah não?... E então, de quem mais foi, posso saber?...

Dela!...

Dela?... Da Maria Lia?...

Claro!...

Essa agora, e porquê?

Essa agora, porque ela tinha mais que obrigação de saber ao que é que ia.

Hã?...

Então, pois claro!... Nunca ouviste dizer que não há fumo sem fogo?... E olha que o que havia mais à volta do Armandinho era fumo... Parecia uma chaminé... Debaixo daquela fumarada toda, só podia haver fogo, por mais pequeno que fosse... Portanto, a Maria Lia só foi porque quis, ninguém a obrigou...

Só foi porque quis, só foi porque quis... Isso dizes tu!... Sabes lá, não estavas lá para ver... E para teu governo, a Maria Lia pode muito bem ter sido obrigada, sim senhor...

Por quem, pelo Armandinho?...

Claro!

Ó pá, cala-te, tu já não sabes o que dizes nem dizes o que sabes... Estou a ver que a Maria Lia deu-te a volta ao miolo...

Não digas asneiras.

Ouve lá, mas o que é feito da dita cuja, da Maria Lia?

       A Maria Lia?... Não sei, não faço ideia... Dizem que ela se amantizou com o Armandinho e que ficou grávida. Dizem também que ele, ao saber do filho, se assustou, foi-se embora não se sabe para onde, e que ela foi atrás dele, com a barriga cheia.

       Então mas para onde é que a Maria Lia foi, se o Armandinho foi-se embora sem dizer nem ai nem ui?

       Sei lá!... Foi atrás dele...

       Olha, só te digo isto: cada qual tem aquilo que merece.

       Ei, calminha aí... Quem te ouvir falar até parece que a Maria Lia mereceu aquilo que lhe aconteceu... Desculpa que te diga, mas cá para mim ninguém merece aquela sorte: ser seduzida, embarrigada e depois abandonada...

       Seduzida, embarrigada, e depois abandonada... Bem sabes tu se foi isso o que aconteceu...

       Não, claro que não: foi ao contrário: a Maria Lia é que seduziu o Armandinho... Ganha juízo, pá, que já tens bem idade para isso!... É claro que foi a Maria Lia que foi seduzida, salta à vista!... Ela ainda era uma criança... Mesmo que ela quisesse, a Maria Lia sabia lá seduzir alguém... Muito menos o Armandinho, que já tinha a escola toda...

       Permite-me apenas que te corrija numa coisa.

       No quê?

       A Maria Lia já não era nenhuma criança. Era uma mulher: jovem, mas uma mulher.

       Talvez tenhas razão...
       Mas queres saber uma coisa?...

       O quê?

       Sinto falta dela, da Maria Lia. Mesmo depois deste tempo todo, continuo a sentir a falta dela. Até parece que quando ela se foi embora, levou um bocado de mim.

       E de mim.

       De todos.


***


       Que chorrilho de disparates.
       É no que dá, falarem sem saber.

       O meu nome é Maria Lia.

       Não sei quem é meu pai nem minha mãe. Com certeza que os tive, pois ninguém nasce por obra e graça do Espírito Santo – desses houve um, e deu no que deu –, mas eu não os conheci.

       Casas tive muitas, famílias não tive nenhuma.

       Na escola sempre fui olhada de lado, eu era aquela de quem se deve ter pena – “pobre coitada, tão novinha e já sozinha no mundo” –, mas nunca ser amiga – “olha que eu não te quero ao pé dessa, ouviste bem?...”.

       Cresci.

       Foi então que me dei conta que os rapazes achavam-me engraçada. E tive muitos pedidos de namoro, muitos mesmo. O que não deixava de ter a sua piada, pois os mesmos que agora arrastavam a asa para o meu lado, eram os mesmos que uns anos antes não me queriam ver nem pintada.
       Nunca lhes dei abébias.
       Também me apercebi que as outras raparigas tinham inveja da minha posição – as voltas que o mundo dá... –, a poder namorar com quem quisesse.
       E eu a não querer.
       Só que isso enfurecias ainda mais, pois elas recusavam-se a ficar com as minhas sobras, por assim dizer, com os excedentes que eu teimava em recusar.
       Mas em verdade vos digo: eu não recusava os rapazes para enfurecer as raparigas. Isso foi apenas um bónus, uma prenda que Deus me deu. Eu realmente não queria nenhum.

       Até ele chegar...

       Era um fim de tarde agradável, com uma brisa fresca a varrer o calor abrasador que se tinha feito sentir de tarde.
       Quando ele chegou, saído do autocarro, ficou ali sozinho, parado, a olhar em volta.
       Ninguém o cumprimentou, apesar de todos o olharem.
       Foi naquele momento, quando os nossos olhares se cruzaram, que eu logo senti uma grande empatia por aquele desconhecido.
       Porque ele era como eu.
       E eu como ele.
       Duas almas sozinhas neste mundo.
       Dois párias.

       Apressei-me a ir perguntar ao dono da taberna quem era aquele homem.
       “Ah, menina Maria Lia” ele disse “a menina não conhece. E deixe-me que lhe diga, também não perde nada, que aquele ali não presta para coisa nenhuma.”
       Perante o meu olhar interrogativo, o velhote continuou “É o filho do Rodrigues, a menina sabe, aquele que morreu há pouco mais de ano... Chama-se Armando, mas todos lhe chamam Armandinho.” e cuspiu, com ar de desprezo “O gajo estava de cana, mas para ele aí estar, é porque já o deixaram sair.”
       “Infelizmente” um outro homem acrescentou.
       “É isso, é” o dono da taberna concordou, vagaroso “Infelizmente”
      
       Ao ouvir aquelas palavras e ao observar aquele homem recém-chegado e desprezado por todos a afastar-se, senti-me mais e mais próxima dele.

       Quis chegar à fala com ele.

       Cheguei.

       “Olá”, eu disse-lhe num fim de tarde em que ele estava sentado à porta de casa, a descascar uma maçã com um canivete que, vim a saber depois, era a sua mais fiel companhia.
       Ele olhou para um lado e para o outro, e depois para mim. Os olhos dele eram dois faróis num imenso mar de solidão e tristeza.
       “Estás a falar comigo?”, ele finalmente perguntou.
       Perante o meu mudo consentimento, ele continuou a descascar a maçã, enquanto me dizia “Nunca te ensinaram que nunca deves falar com estranhos?”
       “Só se é um estranho enquanto não se fala e se conhece.”
       Ele olhou para mim e depois de um momento de silêncio, disse muito devagar “Também está bem...”. Houve um novo momento de silêncio, após o qual ele falou “Então, mas com toda a certeza que já te disseram que eu sou assim a modos que uma espécie de Lobo Mau.”
       “Quem é esse?”, eu quis saber.
       Ele olhou para mim com surpresa “Mas tu mesmo certo não conheces a história do Capuchinho Vermelho?”
Abanei a cabeça e a surpresa dele redobrou.
Ele olhou para mim com atenção, até que perguntou “Como te chamas?”
“Maria Lia.”
“Eu sou o Armando, mas todos me chamam Armandinho.”
“Eu sei.”
“Não me lembro de ti, cá na terra.”
“Então estamos empatados, porque eu também não me lembro de si.”
Perante esta minha resposta, ele riu com gosto.
“Tens toda a razão... Eu parava pouco por cá...”
“Porquê?”, quis saber.
Ele ficou sério. “Não havia nada que me fizesse parar.”
Suspirei. Como eu o compreendia...
“Não achas que está na hora de arrepiares caminho para casa?”, ele perguntou.
Como eu o olhei surpreendida, ele continuou “Não tarda nada é noite...”
Ele tinha razão. “Adeus, senhor...”
“Podes chamar-me Armandinho, como o resto.”
“É assim que quer ser chamado?”, perguntei.
Ele olhou para mim, admirado. “Eu gosto do meu nome de baptismo, Armando.”
“Então, seja”, eu disse sorrindo “Adeus, Armando.”
Até eu sair da vista dele, senti os seus olhos colados na minha pele.

Como acontece em todas as terras pequenas, depressa, mais do que eu poderia imaginar, se soube que eu tinha estado a falar com o Armando.
“Ouve lá, rapariga” disse a mulher dona da casa onde eu estava agora, a minha nova madrinha – nunca eram mães e pais, eram madrinhas e padrinhos: tantos, tantos, que já lhes tinha perdido a conta: eu deveria ser a rapariga mais abençoada por Deus à face desta terra – “mas tu mesmo certo estás parva ou fazes-te?”
“Porquê?”, perguntei, longe de imaginar a resposta.
“E ela ainda pergunta...” ela continuou “Foste vista na conversa com o Armandinho Rodrigues.”
“Com o Armandinho Rodrigues?...” exclamei, perdida “Ah! Com o Armando... Sim, realmente estive a falar com ele, e daí?”
“E daí?!... Então tu não sabes que aquele ali não é boa rês, não traz nada de bom?... Olha que de tipos como aquele uma pessoa só deve querer uma coisa”
“O quê?”, perguntei.
“Distância. Muita distância.” E continuou “Afasta-te dele, estou-te a avisar. Senão...”
“Senão, o quê?”, quis saber.
“Ainda dá uma coisa má ao teu padrinho.”
Suspirei e encolhi os ombros. Com as coisas más do meu padrinho actual, podia eu bem. Uns gritos, umas ameaças, e a coisa ficava por ali. Não me batia. Nunca me batia, nem sequer tentava. Aliás, homem nenhum me batia. Só houve um que uma vez tentou. Coitado, teve azar. Não o matei, se é isso que querem saber, mas posso-vos dizer que o dito cujo aprendeu a lição. Era ainda muito nova quando aquilo aconteceu, mas a verdade é que sempre tive um sentido de sobrevivência muito aguçado.

Passados alguns dias, voltei a vê-lo. Ao Armando.
Estava sentado num banco de jardim situado no largo principal e, desta vez, foi ele é que me chamou “Olá, Maria Lia.”
Sorri. “Olá, Armando. Como está?”
Ele também sorriu. “Podes-me tratar por tu.” E fez sinal para eu me sentar ao lado dele.
Sentei-me. “Está bem. E sendo assim, como é que tu estás?”
“Estou bem, e tu?”
“Também.”
Não pude evitar uma breve risada quando reparei nos olhares escandalizados que todas as outras pessoas nos lançavam.
O Armando seguiu o meu olhar. “Ouve lá”, ele disse “a última coisa que eu quero é arranjar-te problemas. Se calhar é melhor ires-te embora.”
“Essa agora” exclamei “porquê?”
“Então” ele começou “as pessoas...”
Interrompi-o abruptamente. “Eu quero lá saber das pessoas e do que é que elas pensam...”
“A sério?”
“A sério.”
Sorri-mos. E ficámos.

A par da minha amizade florescente com o Armando, também os zunzuns e os boatos cresciam. Ao mesmo tempo, as de repente muito boas almas samaritanas emergentes da terra, tentavam, por todos os meios, alertarem-me para o mau caminho que eu estava a tomar, o caminho da perdição.
A todas ignorei.

Certa vez, no cemitério vi o Armando. Aproximei-me dele, mas estaquei quando vi os seus ombros tremerem. E fiquei estarrecida ao aperceber-me que soluçava. Apesar das minhas tentativas para passar despercebida, o Armando apercebeu-se da minha presença. E olhou para mim, sem tentar esconder as lágrimas abundantes que lhe salpicavam o rosto.
“Olá”, eu finalmente falei, meio aparvalhada, sem saber o que mais dizer.
Ele sorriu tristemente para mim, no meio das lágrimas que nada fez para esconder.
“O que é que fazes aqui?”, perguntou.
Encolhi os ombros. “Não sei.”
“Não sabes?!”, ele admirou-se.
“Não”, confirmei. “Acho que vim ver meus pais.”
Perante a mudez cada vez mais surpreendida dele, continuei “Não conheço os meus pais, nunca conheci. Não sei mesmo se estão vivos ou mortos. Por isso venho aqui. Porque no caso de eles estarem mortos, pode ser que estejam numa destas sepulturas.” Calei-me um momento, e depois perguntei “E tu?”
O Armando ajoelhou-se junto de uma campa. “Vim falar com ela.”
Aproximei-me e li um nome: Berenice Rodrigues. A mãe dele.
Ele continuou “As pessoas gostam de dizer que fui eu que matei a minha mãe, de desgosto.”
Eu calei-me, mas realmente por mais de uma vez já me tinham contado aquela história.
“É mentira”, ele continuou “ela realmente morreu de desgosto, mas não fui eu que a matei. Foi ele.”
“Ele?...”
“O meu pai. Ele é que tratou de a meter nessa cova. Ele é que a matou.”
Ele já não falava comigo. Falava com o vento.
“Matou-a de desgosto e porrada... Depois, quando ele morreu e eu vim ao funeral, chorei. Mas chorei mesmo. Não de tristeza, mas de raiva. Porque ele já tinha morrido e eu já não podia fazê-lo pagar por tudo o que ele tinha feito a minha mãe passar... Se há alguma justiça no outro mundo, a alma dele deve estar a arder nos confins do Inferno!”
Eu aproximei-me do Armando, que continuava ajoelhado junto da campa da mãe, e coloquei a minha mão no ombro dele.
Ao sentir o meu contacto, ele sobressaltou-se e olhou para trás: tinha-se esquecido completamente da minha presença.
“Maria Lia.”
“Sim, sou eu.”

Quando é que eu me comecei a aperceber de que o que eu sentia pelo Armando era mais que uma simples amizade?...
Sinceramente, não sei.
Se calhar foi depois daquela vez no cemitério, onde ele me abriu as portas da sua alma de par em par e me convidou a entrar.
Como eu já disse, não sei.

Mas que eu começava a sentir algo mais forte e mais profundo, era inequívoco.
Mas na minha inexperiência, eu não fazia ideia do que esse sentimento podia ser.
E só soube porque alguém mo disse: o meu padrinho.
Foi um dia ao almoço. Eu suspirava constantemente, mas de tal maneira e feitio, que não dava conta de nada.
“Ó Maria Lia”, exclamou o meu padrinho “pára lá com esses suspiros!... Até parece que estás apaixonada...”
E foi assim que soube: estava apaixonada.

Eu estava apaixonada pelo Armando, disso não havia dúvida, mas seria que ele também o estava por mim?
Eu não lhe era indiferente, eu sabia-o, sentia-o, mas era só.

Certa vez, num dos nossos mais e mais frequentes encontros, o Armando virou-se para mim e olhou-me directamente nos olhos.
Estremeci ao sentir aquele olhar, duas bolas de fogo, a espreitar para dentro da minha alma.
“Maria Lia”, ele chamou.
“Sim?”, respondi, aguentando estoicamente aquele fogo que me consumia.
“Já te contaram porque é que eu estive preso?”
“Já. Por roubo.”
“Só isso?”
“Bem, também disseram que tinhas sido apanhado em flagrante.” Mas logo a seguir apressei-me a dizer “Mas também me disseram que tu sempre te afirmaste inocente, que tinhas caído numa armadilha.”
“E...”
Envergonhada, continuei “Ninguém nunca acreditou em ti.” E muito depressa, acrescentei “Mas eu sim. Eu acredito em ti.”
“Não acredites.” O Armando falou devagar, pausadamente, como se cada palavra carregasse o peso do mundo.
“Como?...”
“Não acredites naquilo que eu disse então. Acredita em mim agora.”
“Porquê?”
“Porque fui eu.”
“Foste tu?”
“Fui, fui eu. Eu roubei, ou melhor, tentei roubar.”
“E porque é que fizeste isso?”
Ele encolheu os ombros. “Sei lá... Acho que foi um caso de fama e proveito.”
“Não percebi.”
“Então, já que eu já tinha a fama, tentei também tirar o proveito. Mas não consegui.”
Calei-me por um momento, a pensar naquilo que ele me tinha dito.
“Mas sendo assim”, finalmente falei “porque é que disseste que não tinhas sido tu? Porque é que não assumiste?”
Mais uma vez ele encolheu os ombros. “Se calhar foi por saber que todos estavam à espera que eu dissesse aquilo.”
“Aquilo?...”
“O que eu disse... Que não tinha sido eu...”
“E tu fazes sempre aquilo que os outros esperam?”
Ele riu-se. “Só quando me convém...”

Não sei qual era a intenção do Armando ao contar-me aquela história do roubo, mas desconfio.
Só que a ser esse o seu propósito, ele falhou. Redondamente.
Porque se o que ele queria era que eu me afastasse, o resultado foi precisamente o inverso.
Senti-me mais perto dele. Mais e mais.
Já não era só paixão o que eu sentia. Era amor.

E ele?... O que é que ele sentia por mim?
Esta dúvida atormentava-me.

Por esta altura do campeonato já as pessoas falavam abertamente da minha pseudo–ligação amorosa com o Armando.
Sim, porque da minha parte não era segredo nenhum: eu estava completamente apaixonada pelo Armando. Não que eu o alguma vez o tenha dito a alguém, porque isso eu não disse. No entanto, eu nunca fiz a mais ínfima tentativa para esconder o turbilhão em que eu estava mergulhada: só um cego é que não via e mesmo assim não sei, não...

Foi com excitação e também – não o posso negar – algum medo que recebi o recado – escrito, pois então: ninguém se atreveria a dar-me um recado falado vindo dele – que o Armando precisava de falar comigo urgentemente: ele entregou-me esse bocado de papel amarrotado e sujo muito discretamente, muito como quem não quer a coisa. Ainda me lembro do que dizia: «Maria Lia. Preciso de falar contigo. Estou à tua espera no barracão por trás do cemitério, hoje, à hora da sesta. Não faltes.»

Nunca as horas me pareceram tão vagarosas, o tempo tão comprido.

À hora marcada eu lá estava, no barracão.
O Armando ainda não tinha chegado. Sentei-me a um canto, num fardo de palha, perguntando-me por quanto tempo iria eu esperar.
Não muito. Ele chegou quase a seguir.
“Olá, Maria Lia”, ele parecia nervoso.
“Olá”, eu disse “O que se passa?”
“O que se passa?...”
“Pois... Pareces tão nervoso... Aconteceu alguma coisa de grave?”
“Se aconteceu... Ó rapariga, em que planeta é que tu andas?!... É claro que aconteceu!... Tu por acaso já ouviste o que as pessoas andam para aí a dizer, já???”
“E daí?...”
“E daí?!... Daí que é mentira, uma completa e redonda mentira!”
“Deixa-as falar, se isso as faz mais felizes... Não te preocupes.”
“O quê?... Tu estás mas é doida varrida, maluquinha mesmo... Deixa-las falar?!... Mas é que nem pensar nisso é bom!... Tu mesmo certo já te deste bem conta do que essa gentinha anda para aí a faladrar, já?...”
“Ó Armando, deixa estar... Isso só são coisas de quem não tem mais nada para fazer...”
“Pois, mas a mim sempre me disseram que quem não tem mais nada para fazer, abre o cu e apanha moscas... Não é andar para aí a falarem do que não sabem...”
“Mas eu não me importo!”
“Ó Maria Lia, não te importas tu, mas importo-me eu... Sim, porque eu já tive a minha quota parte do diz que disse... E vê só onde isso me levou: à prisão!”
Ele calou-se por um momento. Estava muito agitado.
“Mas também”, ele continuou “deixa-me que te diga: esta gentinha é mesmo do piorio... Eu já sabia que eles não me gramavam nem coberto de ouro, mas daí até inventarem que nós dois... nós dois... tu sabes!, vai uma grande distância... Posso não ser grande coisa, mas bolas!, também não sou assim tão, tão... É que tu podias ser minha filha!”
Aproximei-me dele e agarrei o rosto dele com as duas mãos, virando-o para mim.
“Armando, deixa estar.”
“Mas é mentira, Maria Lia.”
Suspirei.
“Porque tu queres”, ouvi-me dizer.
Ele olhou para mim atarantado. “O quê?”
Já que eu tinha começado, ia até ao fim: não ia deixar a coisa pela metade: ia abrir-lhe a minha alma.
“Só é mentira porque tu queres”, repeti devagarinho.
Ele afastou-se de mim, quase que assustado.
“Tu não sabes o que estás a dizer”, ele finalmente disse, de costas voltadas para mim.
“Sei, sim.”
“Não, não sabes. Não podes saber”, ele continuou, ainda de costas voltadas “Tu já olhas-te bem para mim?... Sou um velho... Não, tu não podes saber o que estás a dizer...”
Rodeei-o e fiquei novamente de frente para ele. Mais uma vez agarrei o rosto dele. E li algo nos olhos dele que até então eu não sabia que ele podia sentir: medo. Ele estava realmente assustado.
“Armando.” Nunca a minha voz tinha soado tão doce.
Sem saber que mais dizer, beijei-o. Os lábios dele eram macios.... Ele não me repeliu.
Depois do beijo, enlaçar de almas apaixonadas, ele abriu os olhos vagarosamente e olhou-me fixamente. Sorriu timidamente e depois fez algo de desconcertante: virou-me costas e foi-se embora.
“Armando”, eu chamei-o “não fujas. Não vires costas ao que nos está a acontecer.”
Não sei se ele me ouviu, mas ele não veio.
Sozinha, sentei-me a um canto e chorei.

Adormeci, embalada pela torrente abundante de lágrimas salgadas que teimavam em brotar dos meus olhos.

Quando despertei e regressei a casa dos meus actuais padrinhos, soube da novidade: o Armando tinha-se ido embora, de malas aviadas e tudo.
Sangrei por dentro.
Mas a minha tristeza contrastava com o rejúbilo e euforia das pessoas: “Que o Diabo o leve”, “Já vai tarde”, “Que volte para de onde veio”, “Vá pela sombrinha, que o sol está quente”.

E agora?...
Sem ele, o meu Armando, a minha existência parecia arrastar-se com uma lentidão exasperante, de bradar aos céus.
Se até aí eu não sabia o quanto eu estava ligada ao Armando, quão profundo era o meu amor, soube-o então.

E acreditem-me quando vos digo que não foi fácil.

Embrulhada na minha tristeza, ao principio nem me dei conta do que as pessoas diziam e de como me olhavam.

Demorou algum tempo, mas finalmente ouvi. E vi.

E não fosse aquela melancolia que já tinha assentado arraiais dentro da minha alma, eu ter-me-ia rido. Mas rido mesmo, com vontade.

Porque agora o que as pessoas se entretinham a dizer, era que eu estava grávida. Dele, do Armando. E também tinham muita pena de mim, porque no dizer delas eu não passava de uma pobre coitada a quem tinham cantado a canção do bandido – sendo o Armando o intérprete, claro. E era por isso é que ele tinha dado à sola: para não ter que arcar com as responsabilidades.

Isto só mostra: as pessoas podem ser muito estúpidas, não acham?...

Aquela foi a última gota: eu não podia ficar ali, não podia. Deus me livrasse e guardasse!...

Não.

Eu ia atrás dele, do meu amor. Do Armando.
Não sabia para onde ia, não sabia ao que ia, mas sabia que ia. Tinha que ir.
E ia encontrá-lo. Eu sabia.


Hoje sou uma mulher feliz.
Consegui aquilo que nunca me quiseram dar: uma família.
Tenho uma filha pequena, com 2 anos, luz dos meu olhos: a Guidinha.
E mais do que isso, tenho-o a ele, ao meu marido, ao meu amor profundo. Ao Armando.
Sim, eu encontrei-o.
Ele encontrou-me.
Encontrámo-nos.

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