“Três
fios de corda”
(Domingo)
R.
R. R.
Não rrr, como um rosnar, mas sim R-R-R.
Rute, Raquel e Rebeca.
Três mulheres, três vozes, três
sentires.
Rute, Raquel e Rebeca.
R. R. R.
Rute
Rute era a filha mais velha duma
família que se tinha pretendido numerosa, mas da qual só restavam cinco elementos:
o pai, a mãe e três filhos.
A mãe tinha parido 11 vezes, mas só
três vingaram: Rute, Jacinto, o quarto filho, e Viriato, o sétimo filho: todos
os restantes, Teodora, Quitéria, Estevão, Bernardo, Adalgisa, Octávio, Ilda e
Maria dos Anjos, tinham, de uma maneira ou de outra, falecido. Aliás, à última
tinha-se convencionado chamar Maria dos Anjos, pois ela era ainda tão
pequenina, mas tão pequenina quando o bom Deus entendeu chamá-la para a sua
beira, que ainda não tinha sido baptizada: daí o seu nome, Maria dos Anjos.
Não obstante Rute aparentar ser uma
menina como os pais queriam que fosse, obediente e trabalhadora, uma coisa ela
tinha, que não mostrava a ninguém e da qual fazia um segredo fechado a sete
chaves: uma vontade indómita de sair dali, mudar de vida, deixar a casa dos
pais.
Apesar de não se poderem considerar
abastados, a família de Rute sempre tinha algumas posses, nomeadamente alguns
terrenos, suficientes para lhe proporcionar um dote mais do que razoável.
Assim sendo, mal a Rute menina
desabrochou na Rute mulher, logo o pai, o Sr. Cristóvão, com o consentimento da
mãe, a D. Geraldina, tratou de procurar um futuro genro.
Em total consciência do que a
esperava, Rute rebelou-se. Em silêncio, é certo, mas rebelou-se – quem o pai
pensava que era, para lhe procurar marido? … Se era ela que tinha que se casar,
era a ela, Rute, e a mais ninguém, que competia a escolha.
Após
uma busca exaustiva – que tal o filho dos Macedo, o Albano? … Não, não, é muito
velho… E que tal o Gaspar Carvalho? … Não, não gosta de trabalhar… Podia ser o
cachopo dos Lopes, o Paulinho… O quê?! Nem pensar, ainda é muito criança… O
Sebastião Monteiro? … Não… O Bartolomeu Castro? … Não… O Floriano Antunes? …
Não… O Manuel Ribeiro? … Não… –, e quando já estavam seriamente a equacionar a
hipótese de consagrar Rute ao serviço de Deus, eis que ambos os filhos, Jacinto
e Viriato, entram a correr pela casa adentro com uma novidade: o filho do velho
Xavier Fonseca, o jovem Eduardo, estava de volta da cidade, onde tinha estado a
estudar. E voltava doutor! … O pai até já lhe tinha montado um consultório para
poder exercer a profissão para a qual tinha andado a estudar. Finalmente ia
haver um médico na terra.
Perante esta notícia, o Sr.
Cristóvão e a D. Geraldina entreolharam-se: e porque não? … Até que não era
nada má ideia, ter um doutor na família.
Mesmo que o rapaz fosse marreco,
coxo e zarolho, sempre era doutor e como tal, haviam de ser mais que muitas as
propostas efectuadas por pais com filhas em idade casadoira, o Sr. Cristóvão
sabia. Mas também sabia que como a sua Rute não havia nenhuma: podia haver, e
havia, raparigas com melhor dote, mas bonitas como a sua menina, não havia nem
uma: cabelos da cor do mel com o brilho do pôr-do-sol, olhos da cor do céu em
dia solarengo, lábios da cor da rosa mais vermelha, mãos e pés de criança
pequena, linda como ela só. Um retracto da mãe, quando jovem.
E na verdade o Sr. Cristóvão não se
enganara: aquando da sua visita ao velho Xavier Fonseca, ficou a saber do já
manifestado interesse de muitas famílias da região com filhas em idade
casadoira, em convidar pai e filho para uma visitinha.
Mas isso não obstou a que novo
convite fosse efectuado.
Antes de aceitar, o velho Xavier
Fonseca fez questão de chamar o filho, o jovem Eduardo, e o Sr. Cristóvão não
pode evitar uma sensação de alívio ao constatar que o rapaz não era nada feio,
assustador ou repelente: antes pelo contrário, tinha até um aspecto muito
decente: alto, mas não tanto como o Sr. Cristóvão, cabelo curto
castanho-escuro, olhos rasgados castanhos, porte a modos que atlético.
E uma visita ficou combinada, para
dali a três semanas: o Sr. Cristóvão que desculpasse a demora, mas ele entendia,
não entendia? … É que já tantas tantas pessoas tinham mostrado interesse em
voltar a ver o meu Eduardinho… O senhor perceber, não percebe? … Ó Sr. Fonseca,
por quem é… É claro que eu percebo! …
É, ele percebia, percebia até muito
bem: pai e filho tinham que, primeiro que tudo, avaliar a mercadoria, e depois,
escolheriam a melhor oferta. O velho Xavier Fonseca não era parvo – se o fosse,
não tinha feito a fortuna que fez da maneira que o fez.
Mas isso não apoquentava o Sr.
Cristóvão, pois ele sabia que a flor mais bonita dos arredores estava no seu
jardim.
Aquelas três semanas passaram a
correr e na véspera do dia marcado, na austeridade do seu quarto, Rute pensava
no que os pais lhe tinham dito: no dia a seguir iam receber duas visitas muito
importantes, o Sr. Xavier Fonseca acompanhado do filho, o jovem Dr. Eduardo,
recém-chegado da cidade. Ela, Rute, na qualidade de filha mais velha, teria que
acompanhar os pais ao fazerem as honras da casa. Pois, pois… Como se ela não
soubesse melhor… Oh, sim, Rute tinha perfeita consciência do objectivo final da
tal visita: era para verem-na a ela, para a avaliarem, tal como se
avalia um naco de carne na feira… Bom, o melhor era aguentar e fazer cara
alegre: até que podia muito bem acontecer que não fosse tão mau como isso…
Eduardo… O pensamento de Rute
voltou-se para ele: já não o via há tantos anos… Como é que ele estaria agora?
… Da última vez que o vira, ainda ela era uma criancinha que brincava com
bonecas, sempre agarrada à barra da saia da mãe, enquanto que ele era um
homenzinho, que já deixara para trás os calções.
Aquela
noite Rute passou-a quase em branco, dando muitas e muitas voltas na cama.
O
dia marcado, o tal dia, amanheceu ameno, sem nuvens carregadas de chuva no
horizonte.
Rute
vestiu o vestido previamente escolhido pela mãe, “veste este azul clarinho, que
realça a cor dos teus olhos”, escovou o seu cabelo 100 vezes, tal como lhe
ensinara a mãe, de maneira ficar brilhante, e deixou-o solto, rio de mel
dourado.
Foi-lhe
impossível evitar um sentimento de satisfação ao ler nos olhos, quer do pai,
quer da mãe, a aprovação e, quiçá, orgulho.
Num
grande reboliço, Jacinto e Viriato anunciaram com expectativa que eles vinham
aí, estavam mesmo a chegar.
O Sr. Cristóvão apressou-se a
ir-lhes ao encontro, levando também os filhos, “vocês os dois, venham daí
comigo”, e passado pouco tempo, muito pouco tempo, entraram.
Rute manteve-se propositadamente de
olhar baixo no decorrer da panóplia de cumprimentos, e só os levantou quando
Eduardo Fonseca, o doutor, lhe foi apresentado: ela gostou do que viu, e
principalmente, gostou de ver que ele tinha gostado do que lhe foi dado a ver.
Durante todo o tempo que decorreu a
visita, Rute pôde sentir o olhar ardente de Eduardo fixo em si. Mas ela não
cruzou o seu olhar com o dele, absteve-se disso, obrigou-se a isso.
Foi com um profundo sentimento de
alívio que Rute viu a visita chegar ao fim, com a despedida de ambos os
Fonseca, pai e filho.
Rute viu também a breve troca de
palavras efectuada entre o velho Xavier Fonseca e o pai, o Sr. Cristóvão, e
dessa vez o seu olhar ficou preso no olhar de Eduardo: mas por pouquíssimo
tempo, pois aqueles olhos castanhos queimavam.
Também naquela noite Rute pouco ou
nada dormiu: aquele olhar tão intenso ainda lhe queimava a alma: até parecia
que Eduardo estava ali, no escuro do seu quarto, a olhá-la.
No dia seguinte, e enquanto tomava o
pequeno-almoço, foi com surpresa que Rute viu o seu pai ausentar-se apressado e
com poucas palavras.
Na verdade, a pressa do Sr.
Cristóvão tinha razão de ser: na véspera, no final da visita e durante as
despedidas, o velho Xavier Fonseca manifestara interesse em falar com ele, logo
pela manhã.
Na certeza de isso representar um
bom augúrio, foi com ligeireza que o Sr. Cristóvão se apresentou na casa apalaçada
do velho Xavier Fonseca.
E mais uma vez o seu instinto não o
enganara: o velhote chamara-o para lhe comunicar do interesse do filho em
tornar-se uma visita assídua lá de casa, nomeadamente da sua filha Rute.
Mas é claro que ele, o Sr.
Cristóvão, e toda a sua família, muito especialmente a sua Rute, fariam o maior
gosto na visita do senhor doutor, uma pessoa tão distinta! … A sua simples
presença encheria a sua humilde casa de orgulho… É claro que teriam todo o
prazer, todo e mais algum, na sua visita…
Foi com enorme satisfação, a
esfregar as mãos de contentamento, que o Sr. Cristóvão entrou em casa. À
interrogação muda de D. Geraldina, o Sr. Cristóvão acenou, quase que
imperceptivelmente, com a cabeça.
E foi com um sorriso doce que D.
Geraldina chamou Rute, para lhe comunicar que Eduardo Fonseca ia passar a ser,
a partir daquele momento, visita lá de casa.
Por muito que Rute tentasse negar, a
verdade é que ela viu-se invadida por um sentimento de euforia. E por mais que
ela tentasse combatê-lo, mais aquele sentimento teimava em crescer.
Não demorou muito para receber a
visita de Eduardo Fonseca: aconteceu poucos dias depois, a meio da tarde: ó Sr.
Doutor, que prazer, que enorme prazer… Mas porque é que não nos avisou? …
Aceita um cházinho com um pedaço de bolo, não é verdade? … Rute, serve o Sr.
Doutor…
Eduardo olhou guloso para Rute:
pronto, pronto, já chega… Humm, este bolo está muito bom… Foi a menina Rute que
o fez? … Não? … Mas tenho a certeza que é uma excelente cozinheira… Bom, findo
isto, será que a menina Rute me poderá dar o prazer da sua companhia num
passeio pelo jardim? …
Rute corou de prazer: tenho que
pedir licença aos meus pais… Papá, mamã, tenho a vossa autorização para um
passeio no jardim, acompanhada pelo Dr. Eduardo? … Tenho? … Ah, sim, claro… O
Jacinto e o Viriato também vão…
Foram os quatro, uns atrás dos
outros, numa autêntica romaria: primeiro a Rute, seguida do Dr. Eduardo, e mais
atrás, Jacinto e Viriato.
Então, Dr. Eduardo, que me diz da nossa
terrinha agora?
Que lhe digo? …
Pois… Esteve tantos anos fora… Acha
que está muito diferente?
Não… Nem por isso…
Ah… E as pessoas, que é que o Dr.
Eduardo acha? … Sim, porque essas, de certeza, que estão diferentes…
Sim… Essas mudaram, não haja dúvida alguma…
Mas também, tudo muda, não é verdade? … Veja a menina, por exemplo…
Eu? …
Claro! … Só um cego é que não vê…
Quando me fui embora, ainda brincava com bonecas, e agora, vejam só,
transformou-se numa linda mulher…
Assim eu coro! …
Então, core… Ainda fica mais bonita…
Não diga isso…
Ai, digo, digo.
A serio?… O Dr. Eduardo acha-me
bonita? …
Primeiro, não é Dr. Eduardo, é só
Eduardo. Afinal, já nos conhece-mos há alguns anos… Segundo, sim, a Rute é
muito bonita e sabe isso muito bem…
Rute sorriu, meio envergonhada, mas
muito satisfeita: o Eduardo achava-a bonita! … Iupi!…
Como a temperatura estava a descer
rapidamente, foram para dentro, onde, antes de se despedir, Eduardo lhe
perguntou se a podia voltar a ver.
Correndo o risco de parecer
demasiado ansiosa, Rute apressou-se a responder afirmativamente.
Então, até à próxima… E
Eduardo beijou-lhe a mão, num gesto sedutor.
Adeus… Rute ficou
fascinada com o calor dos lábios dele nas costas da sua mão, e quando ninguém
estava a ver, pousou os seus lábios no sítio onde os lábios dele tinham tocado.
Aquela visita foi a primeira de
muitas, de tal ordem, que já se dizia por todo o lado que o Eduardo Fonseca e a
Rute Morgado andavam de namoro pegado.
Pois, as pessoas falavam, mas nada
era oficial.
Até aquele dia em que, para além de
Eduardo, receberam também a visita do pai, o velho Xavier Fonseca.
Primeiramente, o Sr. Cristóvão e os dois Fonseca, pai e filho, tiveram uma
conversa a sós. Depois, a mãe de Rute, D. Geraldina, foi convidada a juntar-se
à conversa. Finalmente, os quatro chamaram Rute à presença deles. E tudo para
lhe comunicar que Eduardo os tinha honrado com o pedido da mão dela, Rute, em
casamento e que eles, os pais, tinham mostrado o seu agrado. Mas a decisão
final era dela e só dela, se bem que os pais estavam certos de que a sua menina
ia tomar a decisão certa, pois eles bem sabiam o que tinham andado a criar.
Pronto. O que é que Rute tinha a dizer? …
Ela limitou-se a acenar com a
cabeça, mas sentia-se contente, feliz até: Rute realmente gostava de Eduardo:
só não gostava muito do pai dele, o seu futuro sogro… O raio do velho olhava
para ela cá de uma maneira… Mas se calhar era tudo imaginação dela, pois se ele
era pai de alguém como Eduardo, é porque não era assim tão mau: não podia, de
maneira nenhuma…
A data do casamento ficou logo
acordada, e a notícia depressa voou por tudo o que era sítio ali à volta.
Rute gostava cada vez mais de
Eduardo e só lamentava que os dois nunca tivessem qualquer momento a sós, pois
os irmãos, Jacinto e Viriato, disso se encarregavam: deixa estar, minha filha,
que depois de casada, vais ter todo o tempo do mundo… E muita sorte tens tu,
por ainda poderes falar com o teu futuro marido… Quando foi de mim e do teu
pai, nem isso! … Só conseguimos falar depois de casados, é verdade… Portanto,
como podes ver, estás-te a queixar de barriga cheia…
Resignada,
Rute contava os dias que faltavam para o grande dia, e, verdade seja dita, nem
foi de grande ajuda à mãe no tocante à escolha do vestido: ó Rute, por amor de
Deus! … Mas afinal, quem é que vai casar? … Toma atenção, rapariga! … Olha que
este vai ser o dia mais importante da tua vida, vê lá se atinas…
O grande dia, o dia do seu
casamento, era já no dia seguinte e Rute dava o seu último passeio na condição de
solteira, juntamente com Eduardo: meninos… Sim, vocês… Jacinto e Viriato,
bolas, eu vou casar já amanhã, será que é pedir muito que me deixem em paz? …
Muito a contragosto, eles foram-se
embora.
Ouve lá, Rute, será que fizeste bem? …
Claro! Mas tu duvidas? … Até parece
que gostavas daquele par de jarras sempre atrás da gente…
É claro que não gostava, e tu sabes muito bem
disso. Mas…
Mas, o quê, Eduardo? …
Nada, nada… Só não sei se me vou
conseguir controlar…
Então, não controles…
O quê?!… Estás a brincar comigo, não
estás? … Só podes…
Não estou nada…
(…)
A sério que não estou! … Afinal, não
casamos amanhã? …
Sim…
Então, que diferença faz? … Mais um
dia, menos um dia…
Rute… Rute, Rute, não brinques com coisas
sérias…
Não estou a brincar.
Não estás? … Tu realmente não te
importas…? … Não, não! … Não está certo! … O casamento é já amanhã, podemos
esperar mais um bocadinho…
Eduardo…
Não.
Eduardo…
Não.
Eduardo!
Hã? …
Eu quero! …
Queres…? …
Sim.
Tu realmente queres…? …
Quero.
De certeza? …
Sim! …
E pronto! Foi assim que aconteceu,
no jardim do pai dela, na véspera do casamento.
Rute não evitou um sorriso pleno de
malícia quando se viu ao espelho, de vestido branco e flores de laranjeira: se
soubessem, oh, se apenas soubessem…
A cerimónia, efectuada pelo padre
Novais, o mesmo que a tinha baptizado, realizado a cerimónia da Primeira
Comunhão e também do Crisma, correu bem: a pequena igreja da terra estava
completamente enfeitada com flores silvestres e todas as pessoas presentes lhes
desejaram muitas felicidades.
Depois de marido e mulher, Rute e
Eduardo foram viver juntamente com o pai deste último: o velho Xavier Fonseca
fez questão: façam lá esse agrado a um velho… E depois, a casa é tão grande…
Espaço é coisa que não lhes vai faltar… E depois, Eduardo, tens aqui o teu
consultório… Minha querida nora, veja lá se consegue convencer este cabeça dura
do meu filho…
Ainda que não totalmente satisfeita,
e algo inquieta, Rute lá convenceu o marido a aceitar a oferta que o pai dele
lhe fazia.
Na primeira manhã na sua nova casa, foi com
enorme satisfação que Rute se olhou ao espelho e viu o aro de ouro no dedo
anelar da sua mão esquerda: casada, já era casada: já não era a menina Rute
Morgado: era sim, a senhora Rute Fonseca.
Foi até à varanda do seu quarto, e
dali viu o jardim: era bonito: não tão bonito quanto o da sua, quer-se dizer,
da casa dos seus pais, mas ainda assim, era bonito. Óptimo! Era da maneira que
já ia ter alguma coisa para fazer: trabalhar no jardim! … E se ela gostava de
jardinagem… Isso era um gosto que o pai, o Sr. Cristóvão, lhe tinha
transmitido, pois se o jardim da sua antiga casa andava sempre impecavelmente
arranjado, isso devia-se a nenhum outro que não o seu pai.
Rute estava tão absorta a divagar,
que nem notou quando alguém se aproximou dela e a abraçou por trás.
Bom dia! … Como está a minha querida esposa,
neste seu primeiro dia de uma nova vida? …
Oh, és tu… Acordei-te? …
Não! … Não acordas-te nada… Mas
ainda não respondes-te à minha pergunta…
Que pergunta? …
Oh, Rute, com franqueza…
Ah, aquela da nova vida…
Exactamente! …
Então, pode o meu esposo ficar
descansado, que eu me sinto muito bem! …
Assim é que é falar! …
Descemos, para tomar o
pequeno-almoço? …
Claro, mas não nestes trajes, não
achas? …
Oh, sim, tens toda a razão. Toda e
mais alguma. Realmente é melhor vestirmo-nos primeiro, porque se o teu pai nos
vê assim arranjados, quem estava bem arranjado era-mos nós… Havia de ser o bom
e o bonito! … O homem ainda tinha um ataque de coração, ou coisa parecida… O
que vale é que tu és médico…
Rute…
O que foi? …
Olha que essa foi muito mazinha…
Oh! … Vamos mas é nos vestir, para
ir comer…
Agora é que falas-te bem! … Estou cá
com uma fome…
Também eu! …
Ainda brincavam e riam quando
desceram para tomar o pequeno-almoço e se juntaram ao velho Xavier Gouveia:
ora, cá estão os pombinhos… Bons olhos os vejam…
Bom dia, pai.
Bom dia, senhor meu
sogro.
Rute não podia evitá-lo, era mais
forte do que ela: aquele homem, o pai de Eduardo, inquietava-a. Cada vez mais.
E se nas primeiras semanas não
passou disso menos, duma inquietação, não faltou muito para se transformar em
certeza: agora Rute podia afirmá-lo com franqueza: ela não gostava do sogro,
mesmo nada. O homem era esquisito...
Escusado será dizer que nunca Rute
comentou tal assunto com Eduardo, o seu marido: afinal, sempre se tratava do
pai dele e ele podia não gostar.
Mas Rute estava firmemente
convencida de que se não pensasse muito no assunto, o mesmo iria acabar por cair
no esquecimento. Até porque aquilo tudo podia não passar de uma mania maluca
dela...
Mas não.
Um dia, enquanto o marido estava no
consultório, Rute estava no jardim, de cócoras, a cuidar das suas muito amadas
flores, quando alguém se aproximou por trás, meio sorrateiramente.
Bons olhos a vejam, minha muito querida nora.
Rute levantou-se de um só salto.
Bom dia, meu sogro, como está o senhor?
Bem, bem...
Silêncio.
Vejo que está a cuidar do jardim...
Sim, é verdade. Espero que o senhor
não se importe.
Importar-me, eu? E
porquê?
Bem, esta sempre é a sua casa...
Oh, minha querida, primeiro que
tudo, deixe-me dizer-lhe que esta também é a sua casa. E depois, como é que eu
me podia importar, se eu nunca vi o jardim desta casa mais bonito?...
Assim o meu sogro vai fazer-me
corar...
Essa agora, e porquê, se eu não
estou a dizer mentira nenhuma?... Digo-lhe mesmo mais: em tudo o que a menina
toca, fica mais bonito. Veja o meu filho...
Olhe que exagera...
Não exagero nada. Nunca vi o meu
filho mais feliz.
Silêncio,
novamente.
Será que a minha querida norinha não
quer fazer o mesmo por mim?
Como?...
Não podia ser, Rute recusava-se a acreditar nos seus
ouvidos: seria mesmo possível o sogro lhe ter feito a proposta que ela julgava
que lhe tinha sido feita?... Então não queriam cá ver... O raio do velho estava
a tentar meter a foice em ceara alheia... Ceara essa que era do filho, do
próprio filho, ainda por cima. Quer dizer, Rute não era nenhuma ceara e muito
menos tinha dono, mas era casada com Eduardo. E só com Eduardo.
Vai-me com certeza desculpar, mas eu realmente não
percebi. O que é que o meu estimado sogro disse?...
Nada, nada...
E o homem afastou-se.
E agora?... Rute estava num dilema: deveria ela dizer a
Eduardo o que se tinha passado?... Depois de pensar muito, pesar bem todos os
prós e os contras, achou por bem nada dizer. Afinal, que provas é que ela
tinha? Resumia-se tudo à palavra de um contra a palavra do outro. Mais a mais,
o sogro nem sequer lhe tinha feito qualquer proposta explícita: ela é que tomou
aquela frase, “será que a minha norinha não quer fazer o mesmo por mim”, como
tal... Não, Rute não ia dizer nada, ia ficar muito bem caladinha, pois ela não
queria causar problemas e mal estares, longe dela tal ideia... Mas a partir daquele
momento, uma coisa ela sabia: ia ficar de olho no sogro, ai ia, ia.
E se depressa o pensou, mais depressa o fez.
Não importava o que ele fizesse ou fosse, os olhos de
Rute pareciam duas lamparinas eternas a alumiarem o seu mui estimado e
respeitável sogro, Xavier Fonseca.
Mas foi com alívio que Rute pôde verificar que não mais o
seu sogro tentou ou insinuou algo que ultrapassasse as fronteiras do
considerado normal e habitual nas suas relações.
Esse infeliz e momentâneo assunto acabou mesmo por cair no
esquecimento.
E foi com enorme alegria que, passados alguns meses, Rute
recebeu a notícia de que estava grávida.
Notícia essa, aliás, viabilizada pelo próprio marido,
após este último ter-lhe pedido insistentemente, por fim exigido, umas análises
ao sangue e à urina, pois ultimamente achava-a algo esquisita.
E se a D. Geraldina, numa das suas amiúdes visitas, já
tinha alertado a filha para um possível estado se esperanças, devido à já por
várias vezes repetida ausência das regras de Rute, mesmo assim foi com alguma
incredulidade que ela acolheu a notícia da sua gravidez.
E alegria, muita.
Na verdade, foi uma notícia que não deixou ninguém
indiferente: antes pelo contrário: Eduardo estava delirante com a perspectiva
de ser papá, o seu sogro fazia planos mirabolantes para o neto ou neta, os seus
pais estavam extasiados com a futura descendência, enquanto os futuros tios
Jacinto e Viriato já só pensavam nas brincadeiras e traquinices que por aí
vinham.
Estás
feliz?, Eduardo quis saber.
Muito,
Rute respondeu.
Sim, ela estava feliz, muito, mas também assustada, não
menos. Sem saber porquê, algo dentro dela tremia. Mas ao mesmo tempo Rute
abanava a cabeça, e tentava desdramatizar: aquilo era só nervoso miudinho de
estreante, nada mais.
E preferes rapaz ou rapariga?, Eduardo perguntou.
E tu?,
Rute, por sua vez, quis saber.
Não
tenho preferência, ele disse, E tu?
Também não. O que importa é que
venha com saúde...
Isso é
que é verdade.
Silêncio.
E já
pensaste nos nomes?, Eduardo finalmente perguntou.
Se for menino gosto de Artur e se
for menina gosto de Raquel. O que é que achas?
Óptimo.
Nos meses que se seguiram a barriga de Rute crescia,
parecia, de dia para dia e, não obstante todos os muitos cuidados que todos lhe
dispensavam e Eduardo lhe dizer que estava tudo a correr bem e como previsto,
nem assim aquela sensação de medo, que primeiro se manifestou aquando da
notícia da sua gravidez, abandonava Rute. Por mais que ela tentasse combater
esse sentimento, era sempre, ela sabia-o, uma batalha perdida. Logo à partida.
Não importava.
Importava sim a criança que crescia dentro dela. Essa é
que era a batalha, a última batalha, que lhe interessava ganhar, que ela tinha
que ganhar. Mais que uma batalha, uma guerra, a guerra. E Rute
queria fazer o sinal de vitória.
Haviam ainda os muitos enjoos, as
constantes tonturas, mas de nada disso Rute fazia conta. E não compartilhava
isso com ninguém. Nem com a mãe nem com o marido, acima de tudo, não com o
marido. Nunca.
Rute não queria, não podia dar parte
de fraca perante o marido.
Não que Eduardo tivesse alguma vez
feito algum comentário ou tomado alguma atitude menos abonatória. Não, não,
nada disso: muito antes pelo contrário.
Mas Eduardo era médico e se Rute
compartilha-se com ele o que estava a passar com ela, no corpo e na alma, ele
iria, com toda certeza e mais alguma, ficar preocupado, muito preocupado e
exigiria que ela fizesse uma quantidade infindável de exames.
E isso Rute não queria. De maneira
alguma.
Eduardo estava tão feliz com a
perspectiva da paternidade, que Rute não queria, não podia estragar-lhe a
felicidade, apagar-lhe aquele ar de contentamento do rosto.
Mas também, Rute sempre tinha ouvido
falar de histórias de enjoos e desmaios durante gravidezes, portanto, ela não
era a primeira e de certeza que não seria a última.
Como tal, Rute não iria incomodar o
marido com aquelas patetices.
E assim o tempo passou, os meses
voaram.
Rute estava já no sétimo mês de
gravidez.
Sozinha, no jardim, a cuidar das
suas flores, foi repentinamente acometida por uma dor forte, aguda, que parecia
trespassá-la. Rute, a custo, conteve o grito que lhe aflorou os lábios.
Procurou um banco para se sentar. Foi quando sentiu as pernas molhadas. Olhou
para baixo e foi quando o tal grito se soltou.
Florinda, a criada, acudiu a correr,
vinda da cozinha.
Que se passa, minha senhora? Sente-se bem?
Rute nada disse. Apenas olhou para
ela, o medo e a aflição a desfigurarem-lhe o rosto bonito.
Florinda, ao aperceber-se da situação,
também ficou assustada.
Eu vou chamar o senhor doutor.
E saiu a correr.
Rute ficou sozinha. Mas não por
muito tempo. Eduardo apareceu logo a seguir.
Calma, tem calma, que vai tudo correr bem. Eu estou aqui.
Sim, Eduardo estava ali, ao lado
dela. Rute sentiu-se segura.
Depois... bem, depois Rute só se
apercebia de algumas coisas que estavam a acontecer à volta dela, rasgos de
lucidez. Foi assim que se deu conta da presença de sua mãe, D. Geraldina, que
segurava sua mão e lhe passava com um pano fresco pela testa, enquanto lhe
murmurava palavras ao ouvido.
Mas as dores, as dores...
Só mais uma vez, vá lá, só mais uma vez e o bebé sai.
Rute ouviu Eduardo dizer.
Num último esforço, Rute ajudou o
seu bebé a nascer.
Pronto.
Já está. É uma menina, uma linda menina.
Ouviste Rute? Temos uma filha.
Mas Rute já não o ouviu.
Raquel
Raquel olhou para a paisagem que se
estendia à sua frente e sorriu, com um sorriso triste.
Era o dia do seu aniversário, fazia
18 anos, mas não era dia de festa. Nunca tinha sido, nem podia.
No dia em que devia celebrar o seu
nascimento, assinalava-se também outra coisa, uma coisa bem mais triste: a
morte de sua mãe. A mãe de Raquel tinha morrido ao dá-la a este mundo, tinha
passado a sua vida para ela.
Isso, esse conhecimento, fazia
Raquel remoer-se por dentro de tristeza e remorsos, pois sentia-se culpada. Não
o era e ela sabia-o, mas aquilo era mais forte que ela.
Também nunca ninguém lhe tinha
imputado qualquer culpabilidade, pelo menos directamente, mas Raquel sentia
fundo na alma as acusações silenciosas.
Enquanto crescia Raquel sempre
adivinhou que tinha, forçosamente, que ver alguma coisa com o desaparecimento
deste mundo precoce da sua mãe. Lia-o nos olhos do seu pai – pai, sempre pai,
nunca papá... Por isso, quando finalmente lhe disseram a verdade, aos 12 anos,
Raquel não ficou surpreendida.
Tinha crescido rodeada por homens:
do lado paterno, o pai e o avô, do lado materno, os tios Jacinto e Viriato.
O pai nunca tinha voltado a casar,
nem nada que se parecesse: candidatas não tinham faltado, algumas das quais
Raquel até gostava bastante e teria ficado muito feliz se a união abençoada
acontecesse, mas não: nunca tal teve lugar: era como se o pai de Raquel tivesse
fechado todas as portas à felicidade e deitado fora a chave. Aquele homem só
vivia para uma coisa: a sua profissão. Era médico.
Quanto ao avô, viva com Raquel e o
pai. Não deixava de ser um velhote simpático, se bem que às vezes o
comportamento dele dificilmente pudesse ser caracterizado de normal. Não poucas
vezes Raquel dizia para consigo que o raio do homem já estava cheché.
Especialmente quando ele se sentava no banco do que outrora tinha sido um lindo
jardim e se punha a admirar as flores inexistentes. Coisas da idade, assim
pensava Raquel.
Finalmente, os tios Jacinto e
Viriato: dois adoráveis solteirões já cinquentões. Raquel sempre se lembrava de
ver os tios perdidamente apaixonados por alguma, fosse quem fosse, nova ou
velha, magra ou gorda, alta ou baixa, bonita ou feia. Não importava. Mas aqueles
amores eram de marés: ora alta, ora baixa, ora alta, ora baixa, ora alta, ora
baixa... Mas com aquela parelha por perto não havia tristeza que persistisse.
Por isso Raquel tinha uma adoração sem limites pelos tios.
Depois de suspirar fundo, foi para a
casa dos tios que Raquel se encaminhou: pelo menos o ambiente seria mais alegre
que o lá de casa, onde ninguém lhe tinha dado os parabéns sequer.
Ultimamente cada vez era mais penoso
para Raquel estar em casa, respirar o mesmo ar que seu pai e avô. E por isso,
Raquel martirizava-se, pois não obstante o amor que dedicava ao pai e avô, a
verdade era que algo a impelia, irremediavelmente, para fora daquela casa que
era a sua: era como que se tivesse omnipresente a certeza de que se Raquel não
fugisse, a sua alma também iria ser corroída por aquela tristeza melancólica,
qual doença altamente contagiosa.
Que diferença na casa dos tios!... Ali, Raquel
sentia-se bem, amada, desejada. Não que em sua casa a fizessem,
deliberadamente, sentir mal, mas... Mas, mas...
Ora viva, quem é uma flor!... Oh Jacinto,
anda cá ver quem deu à costa...
Olha a minha sobrinha favorita...
(Ao ouvir isto, Raquel não pode
evitar um sorriso: ela não era a sobrinha favorita: ela era a única sobrinha.)
... O que te traz por
cá?
Nada, nada... Raquel só tinha ido
visitar os tios porque lhe tinha apetecido... Ou agora precisava de algum
motivo especial?
Ora essa, era claro que não!...
Aliás, ele e o seu irmão Viriato faziam sempre muito gosto na visita da
sobrinha dilecta.
Oh mano, por falar nisso, hoje não
tínhamos qualquer coisa para fazer?...
Hoje?... Para fazer?...
Sim, mano, não te lembras?...
Mas é claro, o mano Viriato tinha
toda a razão... Toda e mais alguma...
Ao ouvir estas palavras, o rosto de
Raquel ensombrou-se: também ali se tinham esquecido do seu aniversário. Também
ali ninguém lhe ia desejar feliz aniversário.
Que foi, querida?... Parece que ficas-te tão
triste assim tão de repente...
Não, tio Jacinto, não é nada... Deixe
estar...
Tens a certeza?
Tenho, não se preocupem...
E Raquel forçou um sorriso.
Se tu o dizes...
Raquel dizia.
De qualquer maneira, poderia Raquel
fazer algo pelos já velhotes tios?
O quê?...
Sabes, é que nós já não temos fôlego
e precisamos da tua ajuda.
Para quê?
Para apagar estas 1, 2, 3, 4... 18!,
18 velas agarradas a este bolo.
O quê?!...
E os olhos de Raquel brilharam ao
verem um bolo com a inscrição “Felicidades Raquel”.
Não
se esqueceram!...
Eles não tinham esquecido: Raquel
vibrava de alegria, transbordava contentamento.
Oh Raquel, mas que raio... É claro que os
tios não se iam esquecer do teu aniversário... Um dia tão importante na vida da
nossa pessoa mais querida...
Foi mais forte que Raquel: apesar de
toda a bem-aventurança sentida naquele momento, não o conseguiu impedir:
lágrimas, lágrimas abundantes. Que lhe corriam céleres pelo rosto.
Ei, ei, ei... Que é lá isso?... Nada de
tristezas, hoje é dia de festa, não é verdade, mano Jacinto?
É isso tudo.
Ao ouvir estas palavras, o pranto de
Raquel redobrou de intensidade, pois ela sabia muito bem que aquele não era um
dia de alegria para aqueles dois: aquele era o dia em que fazia 18 anos que
tinham perdido a irmã. Eles apenas estavam a fazer aquilo por ela, Raquel. E o
amor que ela devotava aos tios cresceu.
Mas havia mais.
Olha querida, tens aqui uma pequena
lembrança...
Pensamos que vais
gostar...
Os olhos de Raquel fixaram-se num
pequeno embrulho.
O que é?
Vê.
Foi com avidez que Raquel desfez o
embrulho. Viu então surgir à sua frente um livro já velho: Rebeca, de Daphne
du Maurier.
Esse livro era da tua
mãe.
Era o livro favorito
dela.
Ao ouvir aquelas palavras, os olhos
de Raquel abriram-se desmesuradamente e com mil cuidados abriu o livro: passou
então as suas mãos pelas páginas amareladas, as mesmas que a sua mãe tinha
tocado, e quis sorver, beber, as palavras que os olhos da sua mãe leram.
Através daquele livro, Raquel sentia-se perto da mãe que nunca conheceu.
Gostas?...
Raquel nada disse: ao invés, abraçou
o livro e olhou para os tios, nos olhos as palavras que a emoção não lhe
deixava dizer. E foi inevitável: começou a chorar outra vez.
Ai, ai, ai… Isso é que
não!... Se a gente soubesse que ias chorar, não te tínhamos dado o livro, não é
assim mano Viriato?
É isso tudo.
Portanto, vamos lá a
tratar de limpar essas lágrimas…
A
custo, Raquel conseguiu travar o rio que teimava em correr livremente pelas
suas faces, através da secagem forçada da nascente, que afincada e
continuadamente brotava dos seus olhos.
Raquel
ainda por ali ficou algum tempo, na companhia dos tios, quase até ao anoitecer.
E foi com tristeza que viu o sol ir-se esconder atrás dos montes lá longe na
linha do horizonte. Esse sentimento de tristeza em que se sentia afogar estava
relacionado com a hora: hora de deixar os tios, hora de ir para casa.
Tenho de ir para casa,
Raquel disse dolentemente, com imensa melancolia a gritar na sua voz doída.
Vai, vai, minha querida. Já se está a fazer
tarde.
Muito a contragosto, Raquel foi.
Ali, junto de seus tios, ela sentia-se bem, quase feliz: sentia-se amada,
desejada… Que diferença de sua casa… Mas mal estes pensamentos afloraram a
mente de Raquel, logo ela se recriminou: não, ela não podia exagerar. Tinha que
tentar ser justa: Raquel era amada em casa, ela sabia-o. Apenas tinham uma
maneira diferente de demonstrar esse mesmo amor…
Mas antes de entrar em casa, Raquel
quis parar, esconder-se do mundo numa ruela antiga e esquecida, bem perto de
sua casa. E ali mesmo, longe de tudo e todos, pode abandonar-se ao que mais
queria, ao que lhe roía a alma de curiosidade: sofregamente, avidamente,
permitiu-se percorrer os mesmos caminhos que sua mãe tinha já também
percorrido. A alma de Raquel estava faminta de sua mãe, mas aquele livro não a
saciou: nem de longe, nem de perto.
Não achas que já é muito tarde para andares
por aí?
O quê?, Raquel
assustou-se.
Só te perguntei se não achas que é
já muito tarde para andares por aqui, na rua?, Um rapaz ainda novo perguntou.
Raquel olhou em volta e viu que já
era noite escura.
Realmente, tens razão.
Sim, eu sei, O rapaz sorriu e
perguntou, Como te chamas?
Raquel. E tu?
Diogo.
Sorriram.
És daqui?, Diogo
perguntou.
Nascida e criada., Raquel respondeu.
E tu?
Ná, só estou de visita.
Tens cá família?
Tenho, mas eu mal os conhecia. Vim
mais para fazer a vontade aos meus pais, especialmente ao meu pai.
E vais estar cá por muito mais
tempo?
Não!, Diogo apressou-se a dizer. Só
cá vou estar por mais uns dias.
E depois?
Depois?... Ala moço, que se faz
tarde. De volta à santa terrinha .
Uma
sombra de tristeza toldou todo o semblante Raquel.
O que foi?, Diogo quis
saber.
Oh, nada… Raquel disse. É só que
ainda agora te conheci e vais-te já embora… E é tão raro encontrar pessoas da minha
idade, nesta terra…
Deixa estar, que a gente ainda se
vê. Afinal, eu não me vou embora já amanhã…
Mediante
estas palavras, Raquel sorriu.
Já é noite escura., Raquel falou. É
melhor voltar para casa.
Sim, e eu também tenho que ir.
Vejo-te amanhã?
Sim, pode ser.
E onde nos encontramos?
Pode ser aqui.
A que horas?
Sei lá… Por volta das dez da
manhã?... Ou é muito cedo?...
Não, pode ser. Amanhã, às dez da
manhã, aqui.
Sim.
Está bem.
Então… Boa noite, até amanhã.
Boa noite, até amanhã.
Ao
entrar em casa, naquela casa onde tinha nascido e onde sempre tinha vivido,
Raquel não conseguiu evitar um arrepio na espinha, um estremecimento na alma:
era a sua casa, ela sabia-o, mas ao mesmo tempo algo lhe dizia o contrário.
Algo
incorpóreo parecia querer empurrar Raquel para fora daquela casa. Ela não sabia
explicar, mas sentia-o: algo ou alguém parecia convidá-la a sair. Ou
expulsá-la. Raquel só não sabia para quê: para a afogar ainda mais? Ou para
salvá-la?
Sem
pressa, Raquel dirigiu os seus passos para a sala de jantar, onde com toda a
certeza o seu pai e o seu avô já a deviam esperar para o jantar, quase de
certeza com a mesa já posta. Era uma mania do pai que a ultrapassava por
completo: durante o dia o pai mal olhava para Raquel (talvez para evitar, a
qualquer custo, olhar para a causa, ainda que indirecta, da morte da sua muito
amada esposa…), mas à noite fazia questão de reunir a família (aquilo
assemelhava-se mais a uma caricatura de família, do que a uma família
propriamente dita, Raquel amargamente pensou) para o jantar.
Comeram
sem trocar uma única palavra, cada um embrenhado nos seus mais profundos
pensamentos. Ou retirados para os seus próprios mundos.
Raquel
pediu licença para abandonar a mesa.
Mas mal tocaste na comida. O pai quase que a
censurou, como se estivesse a falar com um dos seus pacientes.
Não tenho fome. Ela só queria fugir dali,
daquela sala, daquele ambiente que a oprimia e esmagava.
E para onde vais?
Para o meu quarto.
Já
na solidão do seu quarto, a única divisão daquele casarão onde se sentia mais
ou menos segura, Raquel conseguiu respirar fundo de alívio. E finalmente soltar
as lágrimas que teimavam em inundar-lhe os olhos. Aquele dia quase que
tormentoso tinha chegado ao fim: o dia do seu aniversário. Mas ninguém se tinha
lembrado disso, só os tios.
Embalada
pela negritude da noite e dos seus pensamentos, Raquel finalmente adormeceu.
Nem
durante a noite conseguiu ter paz, o tão almejado descanso: algo, Raquel
sentia-se incapacitada para dizer o quê, teimava em inquietá-la e atormentá-la
e não a deixou dormir.
Só
já bem perto do aproximar da hora dos primeiros raios de luz teimarem em rasgar
o manto escuro da noite, Raquel conseguiu encostar a cabeça à almofada e
dormitar um pouco – mais por cansaço do que por outra coisa qualquer.
Quando
o primeira claridade do dia que se começava a anunciar iniciou, tímida mas
seguramente, a invasão para reclamar o seu reino, há já muito que o sono,
aquele velho amigo, tinha abandonado Raquel.
Sem
querer perder tempo, ela apressou-se a levantar, lavar e vestir. Desceu para
tomar o pequeno-almoço, mas na cozinha ainda não se via vivalma. Com um
encolher de ombros, Raquel recusou-se a preocupar, pois sabia que a sua
ausência não preocuparia nem o pai nem o avô. Enquanto comia, teve a certeza amarga
do mais provável: se calhar, a sua família nem ia dar pela sua falta…
Ao
sair para a rua, foi saudada por um silêncio gritante, aflitivo e incomodativo.
Ensurdecedor. Não se ouvia nada. Não só era ainda muito cedo, como também até
os pardais de telhado, aves habitualmente bem madrugadoras, estavam com
preguiça em saudar o dia com os seus chilreios.
Normalmente
os dias de Raquel, e em especial nas férias escolares, consistia num longo e
lento encadear de tempos vazios, num constante arrastar de dias perdidos.
Só que agora Raquel já não se sentia tão…
perdida. Sem que nada o fizesse prever nem adivinhar, uma pequena réstia de
não-sabia-bem-o-quê tinha atravessado ou aterrado nos seus dias. Mas ela sabia,
ou tentava saber, que Diogo não podia ser a sua salvação: Diogo era só alguém
com quem ela poderia falar, não representava a promessa de coisa nenhuma. Até
podia muito bem acontecer que Diogo não se desse bem com ela… Isso podia muito
bem acontecer! Mas Raquel tinha tanta fome da companhia de outro alguém…
Mas
os seus receios, mesmo os mais profundos e até tenebrosos, revelaram-se
infundados: Diogo era até muito simpático e divertido, dono de uma
personalidade forte e segura, mas afável.
Ao
contrário de Raquel, que ainda se sentia meio perdida e assustada com o depois,
Diogo sabia bem o que queria: como adorava carros e motores, tudo o que ele
mais queria era trabalhar com tudo o que tivesse a ver com o assunto. Quando
era mais pequeno, dizia que quando fosse grande queria ser mecânico, mas agora,
com o pai constantemente a “martelar-lhe” o juízo com a necessidade de um
canudo na mão, tinha arranjado uma forma de aliar as duas vontades, a dele e do
pai: engenharia mecânica.
Se um génio te concedesse três desejos, o que
é que pedias?, Diogo um dia perguntou, assim de repente.
Três desejos?!
Sim.
Mas posso saber a que vem isso
agora?
Nada demais. Só
curiosidade.
Está bem. Vamos lá a ver, três
desejos… Olha, assim de repente, ir a uma ópera, fazerem-me uma festa-surpresa
de aniversário com muitos amigos e tocarem uma canção dedicada a mim.
Mediante
esta resposta, Diogo começou a rir.
O que foi?. Raquel quis saber, Qual é a
graça?
Não é nada. Apenas pensei que fosses pedir o
normal.
E o que é normal?
Tu sabes… Dinheiro, saúde, sucesso… Essas
coisas…
Se calhar, sou eu que não sou normal, foi a
vez de Raquel se rir.
Até aí, eu já sabia, Diogo disse mais para
ele do que para Raquel.
Aos poucos, uma cortina de silêncio
desagradável e atrapalhado começou a instalar-se entre os dois, até que Diogo a
rasgou, primeiro devagar, depois depressa.
Sabes, havia um desejo que eu estava com
esperança que dissesses, mas não.
Que desejo?
Sair daqui.
Raquel estremeceu.
Porque é que estás a dizer isso?, ela
perguntou com medo da resposta.
Amanhã vou-me embora.
Rebeca
Com o sol ardente quase a cegá-la,
Rebeca fez uma pala com a sua mão direita, para melhor proteger os seus olhos
azuis-claros da cor daquele céu, da luz estridente.
Sem saber muito bem – ou mesmo nada!
– o que fazia ali, onde Judas tinha perdido as botas, Rebeca suspirou muito
fundo.
Se calhar, é do choque,
ela disse baixinho, para mais ninguém ouvir.
A sua mãe tinha morrido
recentemente, vítima de doença prolongada. Ao evocar na sua mente estas mesmas
palavras, “doença prolongada”, Rebeca não conseguiu evitar uma risada
tristemente descontrolada, quase histérica. Qual “doença prolongada”, qual
carapuça! Porque é que as pessoas teimavam em não chamar as coisas pelos nomes,
numa vã e infrutífera tentativa de dourar a pílula? Cancro! A sua mãe tinha
morrido de cancro!
Rebeca sempre se sentiu muito
desejada e amada. Teve uma infância feliz, recheada daqueles momentos que se
tornam nas memórias mais acarinhadas, e rodeada de uma família que sempre lhe
almejou nada menos do que o melhor.
Filha única, sempre teve a
consciência de ser extremamente mimada. Mas nem sempre levava a dela avante:
também ouviu uns ruidosos e bem sonoros “não!”. E nem sequer podia ser de outra
maneira. Uma coisa era ser mimada, outra, bem diferente, era ser estragada.
Os pais amavam-se de verdade e
Rebeca sabia-o: via-o, sentia-o.
Apesar de não ter irmãos, tinha
muitos primos. Desses, tinha bastantes. Aliás, a família de Rebeca era bem
grande, enorme. Mas coisa curiosa, era tudo do lado do pai. Avós, tios, primos,
era tudo paterno.
Assim que teve idade para começar a
questionar o estado das coisas, frequentemente Rebeca perguntava à mãe se não
tinha ninguém, alguma família, do lado dela. Mas quando se apercebeu da
infinita tristeza e da imensa dor no fundo dos olhos da sua mãe sempre que lhe
fazia estas famigeradas e já gastas perguntas, ela parou com as questões. E
criou certezas: já deviam ter todos morrido, por isso a mágoa e saudade.
Uma imagem assaltava ocasionalmente
a mente e os sentidos de Rebeca: devia ter uns dois, três anos e estava às
cavalitas do pai, enquanto passeavam à beira-mar. A mãe acompanhava-os, de mão
dada com o pai. Até parecia que Rebeca estava a ouvir os risos soltos e cheirar
o salgado do mar.
Rebeca sempre se lembrava da mãe de
mão dada com o pai. Por vezes ela até brincava com isso: a mãe estava sempre de
mão dada com o pai, porque tinha medo de ele fugir. Não era nada disso e Rebeca
bem o sabia: a mãe… apenas precisava. Do contacto físico, da proximidade: uma
fome imensa e uma sede avassaladora de toque. Estava sempre e dar beijos e
abraços. A profusão dessas manifestações era tal, que por vezes se chegava a
tornar incómoda. Nunca Rebeca manifestou o seu por vezes desagrado, pois bem
via o prazer da mãe. Havia, no entanto, um toque-manifestação de que Rebeca
sentia imenso a falta: quando a mãe lhe afagava o cabelo, tipo festinhas.
Quando a mãe começou a ficar doente,
Rebeca, a bem da verdade, não se preocupou muito nem ligou grande coisa: aquilo
não havia de ser nada de mais, apenas uma coisita passageira.
E quando os pais a chamaram para
falarem com ela, com um ar muito sério, nem aí Rebeca teve alguma suspeita.
Aliás, quando ela finalmente soube o que se estava a passar, não conseguiu
ficar chocada nem surpreendida: a bem dizer, a sua atitude quase que podia ser
confundida com indiferença. O que não podia estar mais longe da verdade. Ela
ficou realmente preocupada. E com medo, muito medo: pela mãe, pelo pai, por
ela.
Durante a doença, a mãe sempre
tentou manter a doçura que a caracterizavam e quase que o conseguiu, não fora o
vazio no fundo dos seus olhos.
Mas quem mais se deixou abater foi o
pai. O seu discurso era pautado pela revolta e pela dor.
Perante a ameaça que pairava sobre
as suas cabeças, mais que uma vez Rebeca se sentiu tentada a novamente
perguntar à mãe sobre a sua família, mas nunca o fez: apesar do sentimento de
perda de parte da sua identidade que assolava Rebeca (sentia que faltava a
outra metade de si), ela permaneceu calada e nada disse. Não queria agitar a
mãe.
Quando o desfecho já anunciado
finalmente aconteceu, ainda assim foi depressa demais.
Não foi sem surpresa que Rebeca
ouviu o seu pai chamá-la, com gravidade.
Sim?, ela disse ao entrar na sala.
Quero falar contigo.
Estas palavras fizeram Rebeca
estremecer: tinha sido naquela mesma sala que Rebeca soube da doença da mãe. E
foi com aquelas mesmas palavras que a maldita conversa tinha começado.
Oh, rapariga, não faças essa cara…
Rebeca tentou desanuviar a sua
expressão facial.
Sim?
Anda cá, senta-te aqui, ao pé de
mim.
Rebeca
aninhou-se ao lado do pai e ele, automática e distraidamente, começou a afagar
o cabelo dela.
Apesar de eu nunca ter dito nada, eu sei que
há uma coisa muito importante para ti e que sempre quiseste saber.
Sim?, Rebeca encorajou o pai a continuar.
A família da tua mãe, ou melhor, a tua
família do lado materno.
Mas já morreram todos, não já?
Não. Quer dizer, não sei.
Como é que é?, Rebeca admirou-se, Não sabes?
Não, não sei.
Como assim?
Quando eu conheci a tua mãe, ela ainda tinha família.
Agora, já não sei.
Que família?
O pai, um avô e dois tios.
Rebeca ficou calada, sentindo-se
atarantada.
Tudo do mesmo lado?, ela perguntou, sem saber
que mais dizer.
Não. Se a memória não me falha, o avô era
paterno e os tios eram maternos.
Então isso quer dizer…, Rebeca finalmente
começou, após um momento de silêncio.
Que a serem todos vivos, tens um avô, um
bisavô e dois tios-avôs.
Houve um novo momento de silêncio.
Mas… mas porque é que a mãe nunca me disse
nada?
Bom, o pai suspirou, isso eu não te sei
dizer. Posso apenas dar-te a minha opinião.
E qual é?
Penso que a tua mãe nunca te quis
dizer nada, porque ela própria queria esquecer.
Mas esquecer o quê?, Rebeca perguntou sem
perceber.
Tudo o que ela tinha vivido até então.
Continuo sem perceber…
O pai sorriu, mas com um sorriso
triste.
Ela não teve uma infância propriamente…
feliz.
Perante o olhar interrogativo da
filha, ele continuou.
Pelo pouco que eu sei, pois a tua mãe nunca
quis falar do assunto e eu sempre respeitei a vontade dela, ela nunca foi muito
acarinhada.
O que é queres dizer com acarinhada?
Ela nunca se sentiu amada nem desejada. Nunca
foi mal-tratada, pelo menos fisicamente. Mas acredito que se calhar ela até o
preferia.
Essa agora, porque é que dizes isso?
Porque isso queria dizer que se importavam.
Ah, pois…
Houve um novo momento de silêncio.
Então, mas a mãe mesmo certo não se dava bem
com ninguém da família dela?
Dava-se com os tios. Mas atenção, não quero
que fiques com a ideia que a tua mãe sofria maus-tratos. Não sofria. Pelo
menos, físicos. Os maus-tratos que ela sofria, eram outros. Mais… subtis.
E a mãe dela?
A mãe dela?, o pai não percebeu a
pergunta.
Sim, a mãe dela, a minha avó.
O que é que tem a tua
avó?
Ela também não tinha uma boa relação
com a mãe?
O pai sorriu com doçura.
A tua mãe não conheceu a mãe dela.
Não?
Não. A mãe dela morreu no parto.
Dela?, Rebeca perguntou baixinho,
quase que a medo.
Sim, e continuou, Percebes agora porque é que
a tua mãe nunca se sentiu acarinhada? Ela sentia sempre que a acusavam, ainda
que silenciosamente, pela morte da mãe dela.
Realmente, não deve ser nada fácil crescer
com essa… “nuvem negra” a pairar sobre nós…
Exactamente. Tudo isso contribuiu para um
maior afastamento e alheamento.
Então mas aquela história dos beijos e
abraços…
Sim?
Eu sempre pensei que aqueles beijos
e abraços todos eram porque a mãe também tinha crescido com eles.
Não, o pai abanou a cabeça, Nada disso.
Aliás, a razão dos beijos e abraços era exactamente o oposto.
O que é que queres dizer com isso?
Não percebes? Como a tua mãe cresceu sem
eles, ela não quis isso para ti.
Ah…
Houve mais um momento de silêncio.
E como é que tu e a mãe se conheceram?
Isso, o pai começou com um sorriso, Foi
durante as férias. Fui visitar uns familiares numa terreola qualquer, lá para
trás do sol-posto, e ela lá estava, a tua mãe.
E chegaste a conhecer alguém da família dela?
Não propriamente. Sabia quem eram, mas nunca
cheguei à fala com eles.
E como é que foi quando as férias acabaram?
Vieste-te embora e ela veio atrás de ti ou foste tu buscá-la?
Nem uma coisa, nem outra. Viemos juntos.
Vieram juntos?
Tal e qual.
E a tua família?
A minha família?
Pois. Como é que a tua família reagiu?
Reagiu bem. Quer dizer, ao princípio não
acharam lá muita piada. Mas assim que tiveram hipótese de conhecerem melhor a
tua mãe, foi tiro e queda: ficaram encantados.
Pai e filha ficaram novamente em
silêncio.
Porque é que me estás a contar tudo isso?
Porque, o pai começou, Eu bem sei como sempre
foi importante para ti conheceres a história da tua mãe.
E porque é que nunca disseste nada antes?
Porque a tua mãe não queria. Ela queria
esquecer, não lembrar. Eu não concordava, mas respeitava. E respeitei sempre.
Ouve, o pai continuou, Eu sei que tu vais
querer conhecer a terra da tua mãe e ver se a família dela, que também é tua,
ainda é viva. Eu digo-te o nome da terra, mas peço-te, espera só até ao
funeral.
O funeral já tinha sido, num dia
triste e chuvoso, e agora, debaixo daquele sol muito quente, Rebeca olhava a
paisagem que se estendia à sua frente e via, bem lá ao fundo, uma povoação cujo
casario se recortava no horizonte.
Resolutamente, Rebeca encaminhou os
seus passos para lá.
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