“Transparente como a água”
(Quinta-feira)
O que eu aqui vou contar é a verdade.
A mais pura das verdades.
E quem disser o contrário, mente.
Descaradamente.
Quem eu sou, ou de onde venho, não
interessa.
Mas posso-vos dizer que costumam
chamar-me Mitó. De Maria Antónia.
Eu disse costumam, mas se calhar
deveria dizer costumavam. Sim, costumavam. Porque agora já não sei. Nem me
interessa. E tenho raiva a quem sabe.
Mas perdoem-me, já me estou a
desviar do que me trouxe aqui. A minha história. A minha verdadeira
história.
Lembro-me de tudo perfeitamente, até
ao mais ínfimo pormenor. Tal e qual um filme a três dimensões que se vai
desenrolando, neste mesmo preciso momento e enquanto falamos – ou deverei dizer
falo? –, à frente dos meus olhos já algo cansados.
Tudo – eu digo tudo, mas se calhar é
mais correcto dizer a parte que vos interessa – começou faz amanhã sete meses.
Poderia dizer que olhei e
apaixonei-me, mas não, não digo. O que na verdade aconteceu foi que eu vi-o e
amei-o.
Assim mesmo. Tão simples quanto
isto.
Ele era qualquer coisa mais que
lindo, era o materializar de tudo o que eu queria: a altura certa, a
constituição correcta, a indumentária aprumada, a apresentação esmerada. Mas
ele era ainda mais: o cabelo preto curto, os olhos castanhos doces e límpidos –
bem, o mais próprio será dizer que eu acho que eram castanhos, foi assim
que eu os imaginei, pois eu apenas o vi ao longe, bem no meio daquela confusão
toda do final do dia, em plena hora de ponta.
Chamei-lhe Saúl.
Não lhe perguntei o nome, se é isso
que querem saber. Não. Eu apenas lhe chamei Saúl, porque gosto do nome.
Saúl.
Soa bem, não soa?
Saúl.
Saúl, Saúl, Saúl.
E com tudo isto já me perdi... Aonde
é que eu ia?... Ah, sim, pois... Já sei... Vi-o e amei-o...
Tal e qual, sem menos nem mais. Zás pás, catrapás pás pás.
Os
franceses chamam-lhe “coup de foudre”. Amor à primeira vista. Nunca
pensei que tal pudesse existir, nunca acreditei. Agora acredito, agora sei.
Apesar de toda aquela gente,
consegui mantê-lo dentro do meu campo de visão. E tentei aproximar-me, assim
como quem não quer a coisa. Finalmente, depois de muitos encontrões e
tropeções, quase que me vi cara a cara com ele. E digo quase porque eu o assim
quis. A verdade verdadinha é que eu não me quis dar a conhecer. Pelo menos, não
no momento, não ali, no meio de tanta gente. Olhando para trás, não sei dizer a
razão de tal reacção, de tal comportamento; timidez não deveria ser, pois esse
nunca foi um traço predominante da minha personalidade: muito antes pelo
contrário, até se pode dizer com toda a segurança que eu sempre fui um tanto ou
quanto descaradona.
Mas.
Mas,
mas... – há sempre um “mas”, não é verdade?
Não
me dei a conhecer. A ele. Ao Saúl. Não sei se por medo, por insegurança, ou se
ainda por outra coisa qualquer.
Fiquei
antes a olhar, a ver.
A
contemplar. A observar. A estudar.
Não gostei do resultado, da
conclusão. Mesmo nada.
Porquê? Não sei.
Não me foi dado a ver nada de mais.
Ele apenas estava rodeado de um grupo, composto por membros de ambos os sexos,
provavelmente amigos, ou colegas, ou ambos. Estavam todos muito bem dispostos,
numa enorme galhofeira. Estavam também a despedir-se. E foi disto que eu não
gostei. Das despedidas. Pois se aos rapazes as despedidas resumiam-se a um
“Adeusinho” ou outro “Até à vista” ou ainda a um “Não te esqueças de jantar”,
às raparigas a coisa fiava mais fino: de todas ele despediu-se com dois
beijinhos. Não que os beijos fossem algo por aí além. Não, eram beijos
normalíssimos, daqueles dados na face. Nada de beijinhos na boca, de encosto de
lábios. Mas também, mesmo que houvesse, que é que eu tinha a ver com isso?...
Mas eu amava-o já...
Se calhar foram ciúmes, o que eu
senti.
Se calhar, foi.
Provavelmente.
Sem nada lhe dizer, sem lhe dirigir
a palavra, despedi-me. “Até amanhã”. Quis despedir-me, sim, quis despedir-me,
mas não consegui. Algo, não sei precisar o quê, tomou conta de mim, das minhas
acções, dos meus passos, e ao conseguir finalmente tomar consciência de mim, do
que eu estava a fazer, dei que estava a caminhar. Não sei onde, não sei para
onde, mas andava, caminhava. Até que o descortinei uns metros à minha frente. A
ele, ao Saúl. E percebi. Eu estava a segui-lo.
Porquê?... E eu lá sei?!... Eu sei
lá porque é que o seguia....
Só sei que o seguia.
Para ver aonde ele morava, acho eu.
E isso eu descobri.
Num quinto andar esquerdo de um
prédio novo situado numa rua não muito estreita, paralela a uma avenida muito
movimentada.
Apostei comigo mesma em como o
apartamento estaria decorado com muito bom gosto, todo em cores e tons claros,
num estilo algo minimalista e muito ecléctico.
Perfeito. Como ele.
Mas essa não foi a minha única
descoberta.
Nos dias imediatamente a seguir
fiz-me sombra: a sombra dele, a outra sombra dele.
E descobri onde ele trabalhava, os sítios que ele
costumava frequentar, as pessoas com quem ele gostava de estar.
Não, não penso que ele algum dia
tenha dado por mim. E se deu, nunca o demonstrou.
Sim, eu sei que este meu
comportamento se pode caracterizar por obsessivo.
Agora,
sei-o agora.
Porque
na altura... não era obsessão, era amor.
Compreendem?...
Era amor. Ou, pelo menos, assim eu pensava.
Fosse
como fosse.
Tornei-me
de tal maneira próxima dele, que ele não podia dar um passo sem eu ver,
espirrar sem eu ouvir, suspirar sem eu sentir.
Ele
respirava e eu respirava.
A
um só viver.
Eu
era ele, e ele era eu. Mas sem ele o saber. Sempre sem ele o saber.
E
finalmente chegou o dia.
O
dia de me dar a conhecer.
A
ele.
Escolhi
aquele dia porque tinha lido no meu horóscopo que algo de extraordinário me
iria acontecer naquele mesmo dia.
E
que algo de mais extraordinário pode haver do que ser amada?
Sim,
porque eu sabia, tinha a certeza.
Ele
ia amar-me como eu já o amava.
Ele
ia olhar para mim e descobrir que eu era a outra metade dele, eu era a que o
completava. Ele ia perceber que sem mim ia andar partido, incompleto, vazio
para sempre.
Ele
ia amar-me.
Ali
mesmo, sem menos nem mais.
“Coup de foudre”.
Amor
á primeira vista.
Mas...
(O
tal “mas”...)
Escolhi
a mesma estação de metro onde o tinha visto pela primeira vez, onde eu o tinha
amado. E onde agora ele ia amar-me a mim.
Ele
parecia que esperava por alguém (Só podia ser por mim, quem mais?... Também ele
sentia que algo estava para acontecer, algo que ia mudar a vida dele para
sempre.) – andava de um lado para o outro impacientemente e olhava quase que
ininterruptamente para o relógio que trazia no seu pulso esquerdo. Decidi pôr
cobro àquela aflição e aproximei-me para me dar a conhecer.
“Olá”,
eu falei.
Ele
nada disse. Apenas olhou para mim. E quando ia dizer alguma coisa, eis que o
metro chega. Devia ser algo muito importante, porque ele não chegou a articular
palavra. Apenas me afastou algo abruptamente (na verdade, quase que me empurrou
com alguma violência), e correu para o metro. Após correr ao longo de várias
carruagens, finalmente parou em frente a uma porta e esperou que a mesma
abrisse.
Quando
abriu, a primeira a emergir foi uma figura de mulher, que prontamente mergulhou
nos braços abertos dele.
Uma
irmã, com certeza, lembro-me de ter pensado.
Mas
não.
Os
irmãos não se beijam longamente. Na boca.
Então...
Fiquei
paralisada, a ver aquela cena cinematográfica, tirada de um filme de quinta
categoria.
Olhando
para trás, não sei porque é que fiquei tão chocada. Sinceramente, não sei. Ele
tinha namorada, e daí?... Ele era tão lindo...
Sim,
era lindo, mas era meu.
Ela
até podia tê-lo visto primeiro, sim, mas isso não interessava, era irrelevante,
porque ele era meu.
Ele
tinha olhado para mim, é, mas não me tinha visto. E amado. Como eu o amava.
Por
causa dela.
Mas
isso tinha remédio.
Se
o problema era ela, isso tinha solução. Se com ela ele só me olhava, sem ela
ele ia me ver. E amar.
Esperei
para ver o que acontecia.
Ele
entrou noutro metro, enquanto que ela não.
Despediram-se
com mais um daqueles beijos “à cinema”, e ela ficou ali, na plataforma, parecia
que à espera. Doutro metro, muito provavelmente.
Vi
ali a minha oportunidade.
Assim
como quem não quer a coisa, aproximei-me dela, e quando o metro que ela
esperava se aproximou, muito distraidamente, dei-lhe assim a modos que um
pequeno encontrão. O suficiente para cair à linha e... E, e... Morreu, pronto.
Foi desta para melhor. Bateu as botas. Aquela, já não era problema...
Querem
ouvir uma coisa curiosa?... Nunca soube o nome dela... Fernanda?... Obrigado
pela informação...
Pois
como eu ia a dizer, a Fernanda – Fernanda, não é?... – já não era problema.
Tinha morrido. Por minha causa. Quer dizer, não completamente, só
indirectamente...
Que
é que eu quero dizer com isso?... Então pois, o encontrão que eu lhe dei não
foi nada por aí além... Eu tenho lá culpa se a rapariga tinha pouco
equilíbrio?... Mais a mais, ela tinha obrigação de saber que nunca se deve
chegar muito à beirinha das plataformas, portanto... Ela também teve culpa no
cartório, não o podem negar...
Mas
como eu ia dizendo, aquele problema tinha sido eliminado, o obstáculo superado.
E
também eu fui ao funeral da rapariga, da tal Fernanda.
Fiquei
longe.
Não
posso negar que também eu senti dor, a dor dele, em relação à morte dela.
Mas
como podia eu sentir dor pela morte de alguém pela qual eu tinha sido
parcialmente (ei, ei, ei... parcialmente, está bem?... não vamos voltar ao mesmo)
responsável?
Só
que doía, doía muito. Amaldiçoei, ainda que momentaneamente, aquela dor que eu
sentia através dele, mas ao mesmo tempo congratulei-me com a profundidade dessa
mesma dor, pois se tinha tanta dor, era porque ele gostava muito dela.
Assim
como ia gostar de mim. Mais que gostar, amar.
Amar,
amar, amar... Um amor aonde eu me queria afogar.
Ainda
senti aquela dor durante muito, muito tempo. E se a um tempo a mesma me era
desconfortável, também me sentia lisonjeada pela capacidade dele em sentir.
Sim, ouviram bem, lisonjeada.
Lisonjeada,
porque um dia aquilo havia de ser tudo para mim. Mim, minzinha.
Enquanto
essa dor se fez sentir, tomei a resolução de não me aproximar dele, leia-se, de
não me dar a conhecer. Directamente.
Mas
continuei a fazer parte da vida dele, ainda que à distância. E durante todo
esse tempo foi-me dado a assistir a profunda tristeza dele, assim como as
tentativas, maioritariamente vãs, dos amigos para tentar animá-lo.
Ele,
Saúl, o meu amor, estava triste, e a tristeza dele quase me matava. Matava e
enfurecia, pois mesmo depois de morta, aquela tal teimava em não desocupar o
coração do meu amor... Inquilina teimosa...
Finalmente,
após meses de luto e de dor, ele começou a ficar mais bem disposto. Primeiro só
a sorrir, depois já a rir, e finalmente até a gargalhar.
A
alegria do meu amor tinha voltado e, com ela, também a minha alegria.
Resolvi
tentar outra vez.
Dar-me
a conhecer e dar-lhe a oportunidade de me amar.
Desta
feita não escolhi local, deixei tudo ao sabor do destino.
E
a verdade é que ele, o destino, sabe mesmo o que faz, pois escolheu para o
local do nosso encontro um jardim cheio de canteiros de flores a desabrochar,
metáfora perfeita para o nosso amor.
Estava
um dia lindo de sol.
E
lá estava ele, sentado num banco de jardim, mais uma vez à espera. De mim.
Corri
para ele, mas antes de eu lá chegar, outro alguém chegou antes de mim: uma
mulher, a quem ele cumprimentou com um longo e cinematográfico beijo. Outra
vez.
Novamente,
alguém tinha chegado antes de mim.
Não
podia ser.
Eu
recusava-me a aceitar isso.
Ele
era meu. Eu era dele.
Era
assim que tinha de ser.
Lívida
de raiva e ciúme, assisti a toda aquela cena patética do enlevo dos dois.
Não
sei quanto tempo ali fiquei, especada a olhar para os dois – os dois estavam
tão envolvidos, que nem deram pela minha presença... E posso-vos assegurar que
nada fiz para a esconder...
Finalmente
os dois levantaram-se e ele seguiu para um lado, enquanto que ela para o outro.
Resolvi segui-la.
Foi
automático. Assim que ela começou a andar, eu fui atrás.
Até
que ela parou numa passadeira, à espera de sinal verde para os peões. A alguns
metros de distância vinha um autocarro.
Sorri,
perante aquele quadro.
Estava
ali a minha oportunidade. De fazê-la desaparecer. Do mapa deste mundo e do
coração do meu amor. Para sempre.
Se
a minha sorte teimava em ser madrasta em relação ao meu amor, ao colocar
variadíssimos obstáculos no meu caminho, ao mesmo tempo era fada–madrinha, ao
colocar à minha disposição formas de transpor esses mesmos obstáculos.
Mais
uma vez me coloquei mesmo atrás dela.
Olhei
para os lados. Ninguém estava por perto, ninguém estava a ver.
Quando
o autocarro chegou perto o bastante, empurrei-a. Só já ouvi os gritos dela
enquanto desaparecia enrolada pelas rodas do veículo.
Mas
não foi só.
Porque
algo desta vez foi diferente.
Ele
foi diferente.
O
meu amor.
Ele
viu. Viu tudo.
Por
isso também ouvi o grito dele, “Carla!”. Foi assim que eu soube o nome dela,
Carla.
Enquanto
ele me olhava esgazeado e telefonava para o 112 e polícia, eu só via o meu
amor, ali mesmo à minha frente, mesmo à mão de semear, como se costuma dizer.
Abracei-me
a ele. Com força, com muita força. Tanta, que tiveram que ser várias pessoas
para me conseguirem afastar dele. Do meu amor.
E
disse-lhe tudo o que me ia na alma. A ele.
Disse-lhe
do meu amor e de como sabia que ele ia amar. Disse-lhe também de tudo o que
tinha feito em prol desse amor.
Ele
nada disse. Apenas olhou para mim com um olhar de horror.
E
é por isso que aqui estou.
Tudo
o que eu fiz, fi-lo por amor.
Por
amor, percebem?...
(Dizem-me
agora que o nome do meu amor não é Saúl: é Diogo. Mas eu não acredito... O nome
do meu amor é Saúl: Saúl, Saúl, Saúl...)
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