segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Maria por três dias

(Segue-se a 3.ª parte do meu projecto, “Sete para sete”.)



                                                      "Maria por três dias”
(Terça-feira)

1º Dia

            Ela olhou para a paisagem que se estendia à sua frente, sem fim à vista: tinha chegado, finalmente. Tinha chegado e todo o seu mundo tinha ficado lá longe, para trás do ombro. Tinha chegado, para três dias de esquecimento.
            Voltou as costas ao que lhe começa a magoar o olhar e centrou toda a sua atenção na sua, por três dias, fortaleza: um edifício antigo mas de beleza inequívoca, tornado ainda mais apelativo pelo crepúsculo que se aproximava.
            “Boa tarde” disse a recepcionista “Posso ajudá-la?”
            “Boa tarde” respondeu com um sorriso “Eu telefonei a fazer uma reserva”
            “Com certeza. E o nome, por favor?”
            Ela identificou-se, e depois de preencher o registo, depois de lhe indicarem o quarto, depois de lhe entregarem as chaves e depois de um “Esperemos que goste da sua estadia”, entrou: atravessou a porta, e pronto, estava lá.
            Olhou à sua volta: o quarto era simples, rústico mesmo. Era banhado intensamente pela luz que entrava a jorros pela janela, para onde dirigiu os seus passos: uma atmosfera quente e refrescante envolveu-a, fruto de um sol agonizante que no dia seguinte nasceria outra vez.
            O cansaço resultante da viagem começou a tomar conta dela: um duche frio só far-lhe-ia fazer bem e a água fria trouxe-a de volta à vida.
            Mudou de roupa e desceu para jantar.
            Como era ainda relativamente cedo, decidiu dar uma volta por ali, para assim ficar a conhecer as redondezas. Tudo à sua volta saltou-lhe à vista como belo: não bonito, mas belo: tranquilizante e assustador ao mesmo tempo, a alma dividida sem saber para onde se voltar.
            “Olá”
            Ai, que susto!… Mas quem tinha falado?… Voltou-se e viu um rapazinho de aspecto meio selvagem.
            “Assustei-te?” perguntou o miúdo.
            “O que é que achas?”
            “Desculpa lá” ele disse, com um sorriso malandro – pois, pois, estava mesmo arrependido, olá se estava: como se ela não tivesse sido já daquela idade…
            Ela encolheu os ombros “Deixa estar”
            “Como é que te chamas?” quis saber o rapaz, mas antes dela ter tempo de responder, ele continuou “Não, não digas… Deixa-me adivinhar… Já sei, Maria!”
            “Maria?!” ela riu-se.
            “Pois, Maria” e explicou “Todas as mulheres são Marias: Maria isto, Maria aquilo, Maria acoloutro… Mas tu não: és Maria só!”
            “Maria só?”
            “Sim, só Maria, sem mais nada”
            “Está bem, que seja Maria” ela sorriu “E tu?”
            “Ivo” respondeu, enchendo o peito de ar.
            “Então, Ivo…”
            “Então…”
            E agora?… Ela nunca tinha sido muito boa a fazer conversa: faltavam-lhe as palavras e nunca sabia o que dizer.
            Mas com Ivo parecia não haver esse problema, pois logo a seguir, ele falou “Estás aqui de férias?”
            “Mais ou menos…”
            “Mais ou menos?”
            “Mais ou menos”
            “Mais para mais, ou mais para menos?”
            “Hã?” ela estranhou “O que é que queres dizer com isso?”
            “Não sei” ele disse “Mas é que me perguntam sempre que eu digo isso”
            “Isso?”
            “Mais ou menos”
            Ela não pode evitar um sorriso e esclareceu Ivo “Eu realmente estou de férias, mas o problema é que são muito curtinhas, não sei se estás a ver”
            “Ah!…”
            “Pois! Tu nunca ouviste aquela expressão que a seguir a um dia de descanso nunca se deve trabalhar?”
            “Como é que é?” Ivo parecia baralhado “Não percebi”
            “Esquece”
            “Ivo” uma voz chamou.
            Quem era?… Um homem, mais próximo da meia-idade que jovem.
            “O que foi?” Ivo fez uma expressão amuada.
            “Mas que diabo estás tu a fazer?” quis saber o homem, para logo a seguir responder à própria pergunta com outra pergunta “Estás a chatear a senhora, não é verdade? Mas tu mesmo certo não encontras nada melhor para fazer?”
            “Não me chateies, ouviste, ó Simões?” Ivo gritou, deitou a língua de fora e fugiu.
            O homem, Simões, respirou fundo, resignado “Vai para casa, vai, meu diabinho”
            Ela olhou para o homem, sem perceber absolutamente nada do que se estava a passar. Tossiu, para lembrar a sua presença.
            “Ai, desculpe menina” disse o homem “Aquele pivete estava a chateá-la?”
            “Quem? O Ivo?”
            O homem anuiu com a cabeça.
            “Não, de maneira nenhuma”
            “Ainda bem” disse, quase aliviado, para acrescentar logo a seguir “O meu nome é Simões e trabalho ali na casa. Vim só avisá-la de que o jantar vai já ser servido”
            “Oh!” ela exclamou “Então vamos”
            Caminharam, ela a pensar com os botões que não tinha, ele sabe-se lá a fazer o quê.
            “Sr. Simões” ela chamou.
            “Sim?”
            “Aquele rapaz, o Ivo… Quem é?”
            “O Ivo?” ele parou “É um rapazola que mora aqui perto”
            “Ah, sim?…” ela encorajou-o.
            “Sim, vive com os pais, que trabalham no campo”
            “E é filho único?”
            “É”
            E mais o Sr. Simões não disse: recomeçou a caminhada em silêncio.
            Ela limitou-se a acompanhá-lo.
            Num instante chegaram à casa e separaram-se: ela para a sala de jantar, ele para ela não sabia onde.
            Havia poucas pessoas para jantar, mas para ela tanto melhor: não gostava de muita gente junta.
            Depois da refeição, ela foi caminhar um pouco ao ar livre, para ajudar à digestão.
            A noite estava agradável e uma leve brisa soprava do mar, trazendo consigo o perfume salgado.
            Do Ivo, nenhum sinal de vida. Também, já era noite escura…
            Respirou fundo para encher os pulmões daquele ar lavado e foi para dentro.
            Sentiu-se cansada – mais do que queria admitir – e foi-se deitar.


2º Dia

            Ela acordou sem saber porquê. Acordou, apenas. Olhou para o relógio em cima da mesinha de cabeceira e quase deu um grito: ainda era tão cedo… Mas porque é que aquilo lhe acontecia sempre? Quando tinha que se levantar cedo, era um castigo para sair da cama, mas quando podia dormir até mais tarde, era infalível, acordava cedo. Frustrante, para não dizer outra coisa.
            Bom, mas já que o mais difícil estava feito, agora só lhe restava levantar: nunca tinha gostado muito de ficar a preguiçar na cama depois de acordar.
            Lá se levantou e, depois de um bom banho e depois de enfiar uma indumentária prática, desceu.
            “Bom dia” ela disse ao entrar na sala onde seria servido o pequeno-almoço.
            “Bom dia” foi a resposta alegre da funcionária que estava a preparar as mesas “Madrugou”
            “É verdade”
            “É a primeira”
            “Parece que sim”
            “Então olhe, é só esperar um bocadinho, está bem?”
            “Tudo bem”
            Ela andou pela casa a descobrir os seus segredos e viu um canto quase escondido: uma cadeira de balouço junto a uma janela e decidiu: a partir daquele momento aquele seria o canto dela, o seu cantinho.
            “Menina, já pode vir tomar o pequeno-almoço” era a funcionária, uma rapariguinha ainda nova com um sorriso de orelha a orelha, a limpar as mãos ao avental.
            Ela foi e, sem uma palavra, sentou-se para comer, mas… Deus meu, que tentação!… Tantas e tantas coisas boas… Ai, minha Nossa Senhora, a dieta… Olha, também não iria fazer mal: um dia não são dias e afinal, estava ou não estava de férias?… Portanto, que se lixasse!
            Comeu e comeu bem: não era o pequeno almoço a refeição mais importante do dia?… Pois então!…
            Bom, estava satisfeita.
            Na rua corria um vento fresco, quase frio, que arrepiava.
            “Maria” um sussurro nas suas costas.
            “Ai!” gritou e voltou-se: à sua frente estava Ivo, que ria a bom rir.
            “Ivo” ela começou “tu nunca, mas nunca mesmo, mais voltes a fazer isso. Mas tu mesmo certo queres matar-me do coração?”
            “Hã?” Ivo ficou sério de repente “Matar-te?”
            Foi a vez dela se rir.
            “O quê?” Ivo quis saber “O que foi? Porque é que te estás a rir? Porque é que achas que eu te quero matar? Eu não quero, juro!…”
            Ela ria-se cada vez mais, sem conseguir parar.
            “Mas o que foi?” insistiu Ivo “Diz-me”
            Mas ela não dizia: não conseguia.
            “Oh, pá” e Ivo bateu com o pé no chão.
            Ela fez um esforço: engoliu em seco e conseguiu parar de rir.
            “Até que enfim” exclamou Ivo “E agora diz-me, que história é essa de te querer matar? Porque eu não quero…”
            Ela dominou os ataques de riso a custo “Ai, Ivo, desculpa lá”
            “Mas do que é que estavas a falar, que eu não percebi patavina?”
            “Ivo, eu não queria dizer nada”
            “Nada?!”
            “Foi só uma força de expressão, uma maneira de dizer”
            “…”
            “Deixa estar, não ligues. Foi só uma brincadeira sem importância”
            “Brincadeira?!…”
            “Sim, brincadeira” e continuou “É uma coisa que se costuma dizer quando nos pregam um valente susto…”. Teve que parar, pois para seu espanto, Ivo gargalhava: e que gargalhadas…
            “O que foi?” ela perguntou, cada vez mais admirada.
            Ivo parou de repente “Então não disseste que estavas a brincar?”
            “Sim, disse. E depois?”
            “E depois?!… Depois, estou-me a rir. Não é isso que temos de fazer quando há brincadeiras?”
            Ela abriu a boca para fechá-la logo a seguir: não disse nada, não conseguia lembrar-se de nada para dizer – não estava à espera daquela resposta de Ivo, a sua lógica ultrapassava-a.
            “Então, o que vais fazer?” perguntou Ivo.
            “Ainda não sei” ela respondeu, encolhendo os ombros “Talvez vá dar uma volta por aí, pelo pinhal, pela praia… Não sei…”
            “Posso ir contigo? Posso?” Ivo começou aos saltos e a bater palmas.
            “E porque não?” ela disse “Anda daí. Mas primeiro pára com esses pulos: pareces uma barata tonta”
            “O quê?”
            “Nada”
            “Não se afoga”
            “Seu malandrinho” ela riu-se “Mas tu sabes…”
            “Aprendo depressa”
            “Isso estou eu a ver”
            Ivo agarrou-lhe a mão e começou a puxá-la “Vamos. Vamos passear”
            “Está bem, está bem” ela aquiesceu “Mas vamos com calma. Não há pressa”
            Foram. Ivo ia à frente a guiá-la e a mostrar-lhe as belezas daquele lugar.
            “Espera aí, Ivo” ela parou.
            “O que foi?”
            “Ivo, eu não quero só conhecer o que os outros já conhecem. Para isso, tinha comprado uma colecção de postais ilustrados e ficado em casa” ela disse “Eu também quero conhecer os outros sítios, aqueles que mais ninguém conhece”
            “Ah…” Ivo ficou pensativo.
            “Mas o que foi?” ela perguntou “Algum problema?”
            “Não, não” Ivo disse muito depressa.
            “Então?…” ela ficou na expectativa.
            “Maria” chamou Ivo com muita certeza “Anda daí. Vou te mostrar o meu sítio preferido. Mas olha lá” ele disse-lhe “é segredo”
            “Tudo bem. Juro não dar com a língua nos dentes”
            “Dar com a língua nos dentes?!…” Ivo estranhou.
            Ela riu-se “Dizer a alguém”
            Ivo franziu o sobrolho “E porque é que não dissestes logo isso?”
            Ela encolheu os ombros “Também tens razão” e logo continuou “Mas afinal, onde é o tal sítio? Vá, mostra-me”
            “Tem calma” disse Ivo “Quem é que está com pressa agora?”
            Ela olhou fixamente para Ivo “Ouve lá, tu por acaso estás a gozar comigo?”
            “Eu?!” Ivo quase gritou “De onde é que tiraste essa ideia maluca?”
            “De lado nenhum” ela abanou a cabeça “Então, vamos ou não vamos?”
            “Vamos, sim senhor”
            Ivo conduziu-a por sítios e caminhos que ela não julgava possíveis.
            “Mas onde é que me levas?” ela perguntou.
            “Já vais ver” foi a resposta de Ivo.
            Eles continuaram por atalhos escondidos, Ivo sempre à frente.
            “Chegámos” disse Ivo com satisfação.
            Ela olhou e viu que estavam numa espécie de clareira, atrás deles o pinhal, à frente as dunas, lá longe o mar.
            “Então, o que é que achas?” Ivo perguntou orgulhoso “Eu chamo-lhe o meu castelo”
            Ela não disse nada: o sítio era de uma simplicidade lancinante e era isso que o tornava tão especial.
            “Vá lá, diz, o que é que achas?” insistiu Ivo.
            Ela fixou-o com os olhos brilhantes “Ivo, é simplesmente lindo. Não há palavras…”
            “Gostas?” quis saber Ivo.
            Ela não falou: sinal com a cabeça de que sim, olhar perdido no que via.
            “Agora vê lá” Ivo começou “tu juras-te que não dizias a ninguém sobre o meu castelo”
            “Está bem” ela disse com alguma impaciência. Era claro que não ia contar a ninguém aquele segredo bem guardado, o castelo de Ivo.
            “Estou com fome” Ivo quebrou o feitiço.
            “Com fome?!” ela exclamou “E isto lá são horas de alguém ter fome?”
            “Eu tenho” parecia a coisa mais natural do mundo, na boca de Ivo.
            Ela olhou para o relógio e levou a mão à cabeça: já eram quase horas de almoço. Não admirava que Ivo estivesse com fome…
            “Anda” ela disse “Temos que ir embora”
            “Embora?”
            “Pois. Não disseste que estavas com fome?”
            “Disse”
            “Então vamos almoçar”
            “Ah, então vamos”
            Ivo agarrou-lhe a mão e levou-a de volta ao ponto de onde tinham partido.
            “Aonde moras?” ela perguntou.
            Mas Ivo não ouviu a pergunta; ou fez que não ouviu, pois a resposta veio em forma de pergunta “Posso almoçar contigo?”
            “Almoçar comigo?” ela repetiu “E os teus pais, não se vão importar?”
            “Não” Ivo respondeu com toda a certeza “Eles nem sequer estão em casa: estão a trabalhar”
            “Bom, se é assim… Anda lá”
            “Fixe!” Ivo exclamou.
            Entraram na casa lado a lado, mas logo apareceu o Sr. Simões em passo apressado “O que é que tu estás aqui a fazer?”
            “Vim almoçar com a Maria” respondeu Ivo escondendo-se atrás dela.
            “Maria?!”
            “Sim, comigo” ela apressou-se a dizer.
            “Consigo?!” o homem, Simões, tinha a perplexidade estampada no rosto.
            “Pois, com a Maria” Ivo pôs-se ao lado dela com uma expressão desafiadora “Eu não disse?”
            “Ah!” uma luz acendeu-se no olhar do Sr. Simões e afastou-se para lhes dar passagem.
            “Toma” ao passarem, Ivo deitou a língua de fora ao Sr. Simões.
            “Ivo, não faças isso” ela ralhou.
            “Porquê?”
            “Porque não se faz”
            “Porquê?”
            “Porque é feio”
            “Porquê?”
            “Porque sim”
            “Porquê?”
            “Porque eu digo, e pronto! Fim da conversa” ela não era uma pessoa paciente: nunca tinha sido e também não era agora que o ia ser.
            Ivo amuou “Também não é preciso ficares assim zangada”
            “Está bem, está bem” ela disse com alguma brusquidão “Pára lá é de fazer beicinho. Se soubesses como ficas feio…”
            Ivo não disse nada.
            “Pronto, pronto” ela sorriu “Vamos mas é nos sentar, que eu quero é comer. Humm… que cheirinho bom. Não sentes?”
            O rosto de Ivo iluminou-se “Sim, sim. Humm…”
            “Vamos para ali” ela apontou uma mesa afastada do centro “Gostas daquela mesa?” e voltou-se para Ivo, mas qual Ivo, qual carapuça!…
            Ele já lá estava, todo sorrisos, sentado à mesa por ela indicada.
            “Bolas, que tu és rápido” ela riu-se.
            Ivo não respondeu: tinha o olhar preso no outro lado da janela e parecia estar a ver algo que nunca tinha visto antes, um mundo novo. E no entanto, era tão somente aquilo que Ivo via e vivia todos os dias. Ela ficou fascinada pela ideia de como um simples pedaço de vidro transparente podia transformar as coisas…
            “Queres carne ou peixe?” ela perguntou.
            “Carne!” Ivo respondeu muito depressa com os olhos esbugalhados “Quero um bife deste tamanho” e abriu os braços a todo o comprimento “com muitas, muitas, muitas batatas fritas”
            Ela fingiu-se admirada “E tens estômago para isso tudo?”
            “Então não tenho…”
            Ela escolheu o peixe e pediram: bife para Ivo, peixe grelhado para ela.
            Começaram a comer e, enquanto o Diabo esfrega um olho, Ivo limpou o prato.
            “O quê, já comeste?”
            Ivo limitou-se a sorrir e a lamber os lábios.
            “Mais que houvesse…” disse ela para si, enquanto acabava o seu peixe.
            “E agora, o que é que queres para sobremesa?” ela perguntou “Há…”
            Mas Ivo não queria saber o que havia, pois só lhe interessava uma coisa “Mousse de chocolate!”
            “Mousse de chocolate?” ela repetiu “Está bem, que seja mousse de chocolate. Eu prefiro… deixa cá ver… tarte de maçã”
            “Dás-me um bocadinho disso para eu provar?” pediu Ivo.
            “Primeiro come a tua mousse”
            “Já comi”
            “Já?!”
            E sim, na taça em frente de Ivo não havia o mínimo resquício da mousse que ali já tinha estado.
            “Pronto, toma lá” ela deu um bocadinho de tarte a Ivo “É bom?”
            “Humm… É muuito bom” Ivo respondeu.
            Ela continuou a comer, mas deu conta de um par de olhos que fixavam gulosamente a sua tarte: Ivo.
            “Não me apetece mais” ela disse “Queres?” perguntou a Ivo, apontando para a tarte.
            A resposta traduziu-se num só gesto: tirar a tarte da frente dela, e comê-la com sofreguidão.
            “Tem calma” ela riu-se “Pareces tu que não comes há três dias”
            Ivo não respondeu. No fim da refeição, limitou-se a dar palmadinhas na barriga.
            “Então, comes-te bem?”
            “Que nem um abade”
            “E agora?”
            “Agora?” Ivo abriu a boca num enorme bocejo “Agora, estou com sono”
            “Estou a ver que sim”
            Nisto foram interrompidos pelo Sr. Simões “Vá Ivo, já é tarde.. Vai para casa, vai dormir”
            “Vou, vou” Ivo concordou docilmente.
            Ela não queria acreditar em toda aquela súbita obediência: se até então só tinha visto aqueles dois a engalfinharem-se…
            Depois de Ivo sair, o Sr. Simões esclareceu-a “Não se admire, menina. Apesar de ralhar com o Ivo, gosto muito dele. Todos nós aqui na casa gostamos, aliás”
            Ela nada disse, mas compreendeu.
            Levantou-se e saiu para a rua. Agora estava calor, muito calor; nada parecido com o vento fresco da manhã.
            Mas o que era aquilo? Um bocejo? Outro? Parecia que o sono também estava atrás dela, também a queria agarrar. Para lhe fugir, ela foi para dentro, para o seu cantinho: enroscou-se na cadeira de balouço, para trás, para a frente, para trás, para a frente, para trás…
            “Menina, menina” uma mão tocou-lhe no ombro.
            “O que foi?” ela respondeu, muito estremunhada.
            “Estava aqui a dormir” disse a rapariguinha do sorriso muito aberto.
            “Estava?” ela repetiu “Realmente, parece-me que já passei pelas brasas”
            “Não estaria melhor no seu quarto? É que aqui não parece muito confortável para dormir”
            “Sabe uma coisa?” ela levantou-se e esfregou a cara com força “Tem toda a razão. Estou com uma soneira, que não me aguento”
            Foi para o seu quarto, estendeu-se ao comprido na cama e dormiu a sono solto. Foi de tal ordem, que nem sequer teve tempo de descalçar as sapatilhas: pelo menos, quando acordou, ainda as tinha calçadas.
            Levantou-se da cama sentindo-se como nova e dirigiu-se à janela: o sol já começava a esconder-se atrás das copas das árvores.
            Desceu e foi à recepção “O Ivo não esteve aqui à minha procura, pois não?”
            “O Ivo? Não, não esteve”
            Já se ia embora, quando se lembrou de mais uma coisa e voltou atrás “Uma coisa: se o Ivo aparecer aqui à procura de uma Maria, sou eu”
            “A menina?”
            “Sim, eu” ela confirmou.
            Saiu para a rua e a brisa de fim de tarde dançou à volta dela.
            Decidiu desentorpecer as pernas e, para isso, nada melhor que um passeio até à praia.
            O extenso areal estendia-se à sua frente, convidando-a a dar uns passos: ela não se fez rogada e de bom grado aceitou o convite. A areia era quente, macia, acariciava os pés.
            Ela sentou-se no meio de ninguém em tanto espaço e ficou a olhar o sol: estava na sua hora de deitar e as gaivotas cantavam-lhe uma canção de embalar.
            Quando finalmente olhou para o relógio, viu que já iam sendo horas de voltar.
            Tomar banho, mudar de roupa, jantar, deitar: de Ivo, não teve mais notícias naquele dia.


3º Dia

            Aquele era o seu último dia, o fim das suas férias. Parecia que só tinham começado na véspera e já estavam a acabar: bem, não tinham começado na véspera, mas tinham começado na antevéspera – a diferença também não era muita.
            Havia tanta coisa para fazer em tão pouco tempo – se se queria ir embora antes de almoço –, mas nenhuma era para ser feita com um estômago vazio.
            Desceu para tomar o pequeno-almoço, mas desta vez não se tinha adiantado: as mesas já estavam preparadas.
            “Desta vez fui mais rápida” disse a rapariguinha do costume, quando a viu.
            “Pois foi” ela riu-se.
            Comeu pouco, pois estava com demasiada pressa para ter fome.
            “Comeu tão pouco…”
            “Não me apetece mais” foi a sua resposta, enquanto corria para o quarto.
            Detestava sempre os últimos dias: eram tão cansativos… Até parecia que o que tinha descansado, puf!, era um ar que lhe dava. Não era justo, não senhor!
            Com as malas já feitas – malas não, mochilas –, ela foi à recepção fazer contas.
            “Esperamos que tenha gostado. Volte sempre” disseram, ao entregar-lhe o recibo.
            Cá fora, enquanto entrava para o táxi, ainda ouviu uma voz conhecida “A Maria?”
            “Foi-se embora”





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