sábado, 17 de novembro de 2012

Apresento-vos Mariana

(Segue-se a 2.ª parte do meu projecto “Sete para sete”.)


                                                              “Apresento-vos Mariana”
                                                                     (Segunda-feira)

            Mariana morreu. Quis morrer. Matou-se.
            E eu não lhe perdoo.
            Mas também, que ideia: matar-se. E deixar-me a mim para segurar as pontas, está-se mesmo a ver.
            Típico.
            E depois, as perguntas: porque será que ela se matou, não sabes?… Não, não sei. Não faço ideia. Mas não desistem. E voltam à carga: não notaste nada de estranho no comportamento dela?… Não, não notei nada. E insistem: mas a Mariana era tua irmã… Pois era, era minha irmã,  e daí? O que é que querem que vos diga?… Depois deixam-me em paz: coitadinha, também está muito abalada pela morte da irmã…
            O tanas!…
            Não bastava em vida, também na morte – Mariana, Mariana, só Mariana… Mariana isto, Mariana aquilo, Mariana faz, Mariana acontece...
            E agora isto.
            O diário dela.
            Posso lê-lo, quem mo proíbe?… A Mariana está morta… E eu sempre sou a irmã dela…
            Mas não tenho curiosidade em saber o porquê – porque é que ela se matou. Até porque isso eu sei. Sim, sim, eu sei, sei muito bem. Fui eu.
            Sério.
            Estávamos a brigar, e eu gritei alto e a bom som “Vai-te matar”!
            E ela foi.

*

            “Hoje tive um dia assim-assim. Na escola foi o mesmo marasmo de sempre. Em casa, idem idem, aspas aspas. Até parece que todos os meus dias foram passados a papel químico. Será que vai ser assim até ao resto da minha vida?… Sei que a grande culpada deste tédio que me assombra sou eu e mais ninguém. Tenho total e completa consciência de que só eu posso mudar o leme que orienta o meu caminho, mas para ser sincera, não me apetece tomar a lugar de timoneiro e, então, deixo-me ir… Pura preguiça, eu sei!”

*

            “Hoje fui ver uma exposição de Arte Impressionista. E descobri um pintor: Claude Monet. Fiquei fascinada pelo trabalho dele. Mas um quadro, em particular, ficou gravado cá dentro, «Paisagem com Pomar e Figuras Humanas». Ao olhar para aquele quadro, esqueci-me do tempo. Não sei, não faço ideia, quanto tempo fiquei a olhar para aquele quadro, pois quanto mais eu olhava, mais eu via: havia sempre qualquer coisa de novo, uma contínua descoberta, Alice no País das Maravilhas.
            Por fim, tive que fugir: os meus olhos ficaram rasos de água e eu não queria, não podia, começar a chorar à frente de todas aquelas pessoas.”

*

            “Hoje, mais que nunca, fiquei convencida da minha vulgaridade. Sei que não sou bonita, nunca fui, mas o que aconteceu magoa: há um rapaz, o Paulo, de quem eu gosto, muito. Apesar de nunca ter-mos namorado, tinha quase a certeza (e sublinho o quase) a certeza de que ele também gostava de mim. Mas há algum tempo ele começou a afastar-se, e quando estava comigo, mostrava-se distante, alheado. E descobri a razão de tal fuga: vergonha. O Paulo tem vergonha de mim! Não da minha maneira de pensar e falar, mas do meu aspecto. E isso dói, dói muito…”

*

            “Estou contente. Não sei porquê, mas sinto-me bem, muito bem. Há um sentimento de euforia que me droga e me faz perder todos os medos. Hoje deixei os meus óculos escuros de lado e a luz forte, tão forte, quase me rompe a vista. Faz doer, mas é uma dor boa – se é que tal pode existir…”

*

            “Começo a ficar cansada; cansada de tudo, tudo mesmo. Quero dormir e não mais acordar. Talvez assim o meu sonho possa ser agradável, e talvez assim possa despertar deste pesadelo que lentamente vai engolindo de forma voraz os meus dias. Sei que parece contraditório, mas não é: o que é a vida, senão umas férias dadas pela morte?…”

*

            “Hoje fui pela 1ª vez a uma discoteca. Estava ansiosa: depois de tanto batalhar, eu ia a uma discoteca! Mas que desilusão!… Esperei tanto por este momento, que na minha mente via outra coisa, um reino diferente. Mas afinal aquilo não passa de um sítio onde as pessoas ficam a saber como se sentem as sardinhas em lata, mas com música – que às vezes mais parece barulho… Até fiquei mal disposta: as luzes fortes a girar, a música muito alta a bater… Mas realmente não é para mim: senti-me como um peixe fora de água a tentar desesperadamente encaixar-se. Tentei dançar, mas foi inútil: realmente lembro-me de me dirigir para a pista de dança, mas não era eu quem lá estava: era apenas um corpo sem alma que se mexia de forma desconexa. E pensar que há gente que gosta de ser sufocada no meio daquele barulho… Uma verdadeira descida aos infernos, é o que é!…”

*

            “Hoje descobri um novo gosto: o gosto da escrita… Fiz até um poema! Chama-se «Partir», e é assim:

            Cabelo ao vento
            Olhos postos no horizonte
            Estás tu
            Mãos no rosto
            Marejado de lágrimas
            Estou eu
            Vais partir
            Vou ficar
            «Um dia…» dizes tu
            Um forte soluço que me sacode
            «Sim, um dia…» digo eu
            Sorris
            Sorri-o
            Sorrimos
            «Adeus…» dizes tu
            «Até qualquer dia…» respondo eu
            Sim, vais partir
            Vou ficar
            Mas ambos sabemos, que um dia,
            Nos voltaremos a encontrar…

            Et voilá! Nada mau, para primeira tentativa…”

*

            “Todos pensam que eu sou uma pessoa fria e insensível, sem sentimentos, um monstro. E hoje, mais uma vez, contribui para essa crença generalizada: na escola houve alguém, aluno ou aluna, que teve de ser hospitalizado. É claro que a presença de uma ambulância na escola despertou curiosidade… Uma amiga perguntou «Quem será?», ao que eu respondi «Não sou eu».
            Ela olhou para mim com o espanto estampado no rosto «Esta rapariga surpreende-me…».
            Será que ninguém vê que tudo isto é uma máscara, um escudo para me proteger?…”

*

“Hoje na escola tivemos que fazer uma composição sobre a paisagem mais bonita que já tivéssemos visto, para a disciplina de Português. Já não me lembro do que escrevi, mas sei que foi algo nada original: um pôr-do-sol aqui, um mar acolá e mais alguns figurantes como retoques na fotografia. Sei também que não poderia ser sincera no tocante à paisagem, pois eu mesma às vezes ainda duvido: foi real, ou foi miragem?…
Buscando nos arquivos da minha memória, sou assaltada pelas imagens: estou no cimo dum monte e não posso ver o vale devido ao nevoeiro espesso; só vejo os cumes das colinas, quais ilhas encantadas, a emergir dum oceano feito de magia e fantasia.
Espero pelo canto de Circe, pelo barco de Ulisses, por Jasão e os Argonautas.
É irreal, tão irreal… Irreal demais para ser miragem.”

*

“Cada vez me sinto menos confortável na minha pele; por vezes questiono-me: porque é que eu não nasci rapaz?… Pode parecer fraco e cobarde, mas é tão difícil ser rapariga. Se não obedecemos a certos cânones para podermos ser consideradas minimamente aceitáveis, quase que somos postas de lado, marginalizadas. Acredito que tal não é feito intencionalmente, mas por vezes bate uma solidão… Talvez por isso sempre me dei melhor com rapazes: gosto de estar com eles, falar com eles… Fazem-me sentir uma deles. Com as raparigas, não: é diferente. Quando começam a falar dos namorados, sinto-me mal, sem assunto, a mais. Sinto-me deslocada: sou uma carta fora do baralho, uma peça de puzzle perdida à procura do sítio.”

*

“Hoje escrevi um novo poema. Foi de uma assentada. Tinha acabado de ter uma discussão com a minha mãe (já nem me lembro porquê...); furiosa, fui para o meu quarto e, zás!… Saiu assim:

Mais uma vez pensei
Mais uma vez falei
Mais uma vez gritei
Mais uma vez lutei
E mais uma vez senti
Que ninguém me sente a mim…”

*

“Pela 1ª vez, hoje experimentei fumar. Conheço tanta gente que o faz, que decidi ver como é: é horrível!… Fiquei engasgada com o fumo, e deu-me um ataque de tosse medonho. Mas como é que pode haver quem goste daquilo?… Não só sabe mal, como também cheira mal… Para mim, nunca mais!”

*

“Por vezes penso no amor. Amor mesmo, a sério, e não aquelas paixonetas… Será que algum dia o vou conhecer?… Por vezes sinto que tenho tanto aqui dentro, que até parece que vou rebentar; mas não há ninguém a quem o dar. Nunca fui de namoricos inconsequentes, ou como é mais correcto dizer, de curtir. Não tenho nada contra quem pratica, mas para mim, não obrigado! Talvez o erro esteja em mim, talvez eu esteja a ser bota-de-elástico, mas é assim que sou e penso!”

*

“Nova descoberta: Rodin. Contactei com a obra dele através do livro de Filosofia, onde vêm várias fotografias das esculturas dele. E eu que pensava que Rodin era só «O Pensador», estava enganada: Rodin é muito mais, um poço sem fundo de alma e sentimento. A minha favorita é «Desespero». Quando olhei para a fotografia, pensei que nunca houve algo tão bem baptizado: uma mulher dobrada, centrada sobre si própria, a tentar esconder toda a mágoa que em si nada.”

*

“Uma cena marcou-me hoje: uma visão de fome. Mas não foi criança, homem ou mulher: foi um cão. Estava na paragem à espera do autocarro e passou um cão. Estava abandonado e nos seus olhos vi toda a fome do mundo; e vi também medo, receios infinitos. Acho que nunca vou esquecer aquele olhar tão fundo, espelho onde eu me vi a mim.”

*

“Por vezes sinto que nada vale a pena. Os meus dias são feitos de dor e desilusão. A vida é uma merda!

Eu queria fugir de tudo isto
queria sair daqui
queria chegar a algum lado,
queria chegar ao outro lado,
à outra margem.
Eu estou a morrer,
e queria viver…”

*

“          «Quero ser aquilo que nunca quis ser
              Para sentir aquilo que sempre tive medo de sentir»

 Hoje saiu-me esta frase, retracto do meu pensamento. Sinto-me invadir por um medo crescente de estar a deitar fora a minha vida, sem nunca a ter experimentado. Sinto que esta minha existência não passa de um total e completo desperdício, rotundo fracasso.”

*

“Comovi-me hoje ao ouvir uma peça de música, chamada clássica. A peça chama-se «Concerto d’Aranjuez», e é de um compositor espanhol de nome Rodrigo. Chamam-me maluca por gostar de música clássica, mas a verdade é que a minha alma dança. Se isto é ser maluca, então eu sou doida varrida…”

*

“Hoje, pela 1ª vez, chorei pela morte de alguém. Não foi de nenhum parente. Nem amigo. Muito menos conhecido. Na verdade, não foi de ninguém humano: foi sim, a minha gata. Senti demais aquela perda.”

*

“Estou sem vida: o meu oásis virou deserto, e onde havia água a pular de vida, existem agora areias mortas.

Isto não sou eu
Aquilo não sou eu
Nada disto é eu
Sinto-me só e perdida neste mundo
Queria ser algo melhor
Sentir algo maior
Mas não sou capaz
Estou seca!
Quero que algo aconteça na minha vida
Capaz de me fazer sentir outra vez
Ser outra vez
Amar outra vez
Quero que tu aconteças!”

*

“Cada vez penso mais em acabar. O último acto. É uma ideia que não me assusta, antes pelo contrário: atrai-me irremediavelmente a paz que oferece. Parece que estou a ver a cena toda em câmara lenta: o pegar na arma, encostá-la à cabeça…”

*

“Pronto, está feito. Agora é só esperar… Sinto-me livre, com asas para voar. O sono está a chegar: é ela que vem. Bate à porta, mas o convite há muito que foi feito. É a morte. E não, não é fria nem horrível. É uma mulher quente, linda, que me estende os braços. Refugio-me no seu regaço e deixo-me embalar…”

*

            Acaba aqui o diário de Mariana.
            A minha irmã.
            Fecho-o... e choro.

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