domingo, 12 de fevereiro de 2012

Solo para dois


        Tu sabias, tu já sabias…
        Mas escolhes-te nada dizer. Especialmente a mim.
        Achas justo?...
        Achas bem, o que fizeste?...
        E porque é que não respondes?...
        Não respondes, porque… porque…
        Porque não podes, não é?...
        Agora já não…


        “Meu amor mais amado, meu Luís
Se estás a ler esta carta, é porque acabou. E tu já sabes. Porque é que eu o fiz?... Não sei… Talvez por medo… Sim, acho que é essa a razão. Medo. De tudo. Principalmente de ti. Apesar de já o saber há muito tempo, escolhi nada te dizer. Contigo, podia viver na ilusão de o mundo estar bem e de tudo o resto ser apenas um sonho mau, um pesadelo do qual iria acordar e tu porias os teus braços à minha volta e sussurrarias que já tinha passado. Soube-o ainda antes de te conhecer. Sei que quando o soube senti-me tonta, o mundo a querer fugir de mim. Senti-me mal, mesmo muito. Mas escolhi nada dizer. Talvez assim fosse mais fácil fingir, viver uma vida sonhada… Mas não foi fácil. Nunca foi fácil.
        Lembro-me do dia. Do dia em que finalmente soube. Fiquei tão perdida… E agora?... Ainda pensei em dizer às pessoas que me eram mais próximas, mas logo quase que de imediato abandonei essa ideia. Não, ninguém ia saber. Por muito reduzido que fosse o número de pessoas, escolhidas por mim, que viessem a saber o que se estava a passar, esse número ia, indubitavelmente, aumentar. Eu não tinha quaisquer ilusões: não obstante a boa vontade das pessoas, sabia que a notícia se ia espalhar depressa e descontroladamente, como fogo em palha seca. Eu não queria ser conhecida como “aquela pobre coitada”. Porque era isso que ia acontecer, não tenho dúvidas. E então escolhi calar-me, nada dizer.
        Eu fingia, mas só por fora. Por dentro, não fingia: não podia. Eu sabia a verdade. Podia enganar todos os outros, mas não a mim.
        Quando te conheci, acordei novamente para a vida. E novamente escolhi nada dizer. Muito menos a ti.
         Tenho esse dia bem presente comigo, todos os dias. Está gravado na minha alma.
        Lembras-te?
        Foi num café, naquele café da esquina: o NOSSO café.
        Eu tinha acabado de ser atendida e tu estavas a chegar. Eu virei-me no preciso momento em que te dirigias ao balcão e PAM!, chocámos um com o outro. Eu levava uma bebida na mão que, milagrosamente, quando se entornou, não foi para cima de mim. Tu desfizeste-te em desculpas.
«Peço imensa desculpa».
«Não faz mal».
«Sou mesmo desastrado…»
«Não se preocupe!»
«Pelo menos, deixe-me pagar-lhe outra bebida igual à que entornou».
«Deixe lá estar isso».
«Não, não. Faço questão…»
«Nesse caso...»
Enquanto pagavas, perguntaste «Está com tempo?»
«Tempo?... Sim, estou com tempo».
«Óptimo! Eu também.» E continuaste «Vou beber um café. Faz-me companhia?»
«Eu?!...»
«Claro!» Tu riste-te «É o mínimo que eu posso fazer».
«Não sei…»
«Vá lá… Faça-me lá esse favor…»
«Favor?!...»
«Pois claro! Detesto comer sozinho».
Foi a minha vez de rir. «Comer?...»
«Pronto, seja.» Anuis-te «Beber».
Dirigiste-te para uma mesa e eu acompanhei-te.
«Deseja tomar alguma coisa?» perguntaste-me, enquanto nos sentávamos.
«Uma água sem gás, natural», respondi.
Enquanto esperávamos pelo café e pela água, tu estendeste a tua mão direita «Permita-me que me apresente. O meu nome é Luís».
Eu sorri e apertando a tua mão, respondi «Hélia».
Tu também sorriste «Muito prazer, Hélia».
Fomos interrompidos pela chegada dos nossos pedidos. «Um café para si e uma água para si. Obrigado».
«Obrigado» respondemos, tu e eu, ao mesmo tempo.
Rimo-nos com gosto.
«Já não casamos hoje…» começaste tu.
«… nem morremos amanhã» acabei eu.
«Costuma vir a este café?» perguntaste.
«Sim, todos os dias» respondi.
«Tem graça, nunca cá a vi».
«Deixe estar, que eu também acho que nunca cá o vi».
«Porque será?...»
«Olhe, das duas, uma: ou ainda vimos meio a dormir, ou então, muito pura e simplesmente, desencontramo-nos».
«Acha?...»
«Acho que sim…»
«Deve ter razão… Mas vou mais pela segunda hipótese: desencontro».
«E porque é que diz isso?»
«Primeiro, porque eu nunca venho… como é que disse?... ah, sim, ‘meio a dormir’ e segundo, porque de certeza que eu já teria reparado em si».
Não pude evitar um sorriso. Tu estavas a meter-te comigo, não estavas?
Gostei. Gostei de sentir que, apesar do que eu já sabia, ainda era capaz de suscitar galanteios.
Com o tempo, ficámos amigos. Mas amigos mesmo, daqueles unha com carne; daqueles capazes de fazerem telefonemas às horas mais disparatadas, nem que fosse só para fazer um comentário tolo.
No meio daquela amizade toda, senti que outro sentimento estava a querer emergir. Assustei-me. Deveras. Eu nunca podia assumir o outro sentimento, tinha que o deixar lá enterrado bem fundo nas entranhas da minha alma. Eu tinha que abandonar aquele sentimento, esquece-lo. Para meu bem. E teu. Pois eu sabia que nunca podia ser.
Mas numa das muitas vezes em que estivemos juntos, senti que também tu estavas a ser invadido por esse sentimento. Só que, ao contrário de mim, não te parecias importar. Antes pelo contrário. Parecias feliz. Voluntariamente, te estavas a deixar afogar nesse sentimento.
Mais do que amedrontada, fiquei apavorada. Aterrorizada. E agora?... Tu não sabias, eu sim.
Sem pensar em mais nada, fechei os olhos com força e saltei. Apaixonei-me. Deixei-me apaixonar. Por ti. E tu apaixonaste-te por mim. Egoisticamente, eu permiti que te apaixonasses por mim. Mas nem assim, eu falei. Calei-me.
Tu estavas feliz, eu estava feliz…
Quando me permitia esquecer, eu estava feliz.
Mas sempre que me lembrava…
Imaginemos uma viagem: o esquecer representa a venturosa partida, o lembrar representa a dolorosa chegada. E eu só queria partir, para nunca mais chegar.
Contigo, eu queria partir.
Mas, invariavelmente, eu chegava. Sempre. E de cada vez, eu sofria. Mais e mais, sempre cada vez mais. Já não era só a minha alma que sofria: também era o meu corpo. O doloroso já não era só interior, também era exterior; já não era só psicológico, também era físico. Literalmente, eu sofria: padecia de dores lancinantes.
Incapaz de falar contigo, parti.
Cobardemente, escolhi fugir. Tinha tanto medo da tua reacção, quando te dissesse… SE te dissesse…
Fui egoísta, eu sei.
Mas eu não queria que assistisses a este triste espectáculo, pois se era assim que eu me sentia: como um palco de variedades baratas, a abundar de esquisitices e aberrações…
Não disse a ninguém para onde fui. Simplesmente, desapareci. Fugi.
De ti, de mim.
Fugi para… nem sei. Mas para longe, longe de mim. E de ti.
Ninguém soube para onde fui. Nunca, pelo menos por mim.
Fugi, para longe do teu olhar de manhãs orvalhadas; do teu riso de água selvagem; do teu cheiro de terra molhada; do teu sorriso de tardes ensolaradas; da tua voz de brisa fresca.
Se estás a ler esta carta, é porque tudo já acabou.
Não te quero pedir desculpa. Muito menos perdão. Não me atrevo a tanto.
Só gostava que te tentasses lembrar de mim sem raiva. Porque o que vivemos foi real.

                                                                       Hélia” 

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