Olhavas-te
ao espelho e não desgostavas totalmente do que vias: cabelos castanho-escuro
presos num fácil rabo-de-cavalo, olhos castanhos e a pele clara salpicada de
sardas.
Ainda
faltavam alguns dias – para ti pareciam muitos, mas na verdade eram menos – e
não se falava de outra coisa: do casamento, do TEU casamento.
Esse
era um dia pelo qual esperavas ansiosamente. Não pela tua vontade em unires a
tua vida ao Amílcar, o teu noivo, mas porque querias despachar a coisa
depressa, por assim dizer. Quanto mais depressa chegasse o dia, mais depressa
passava o dia.
Tu
sabias que dito assim, até parecia que encaravas o teu casamento de ânimo leve,
quase que com leviandade.
E
isso não era o que acontecia.
Tu
até gostavas do Amílcar, tu sabias que sim.
Mas…
- e lá estava, o tão temido “mas”.
Já
o conhecias desde criança, pois era teu vizinho. Cresceram e brincaram juntos,
colegas e confidentes, companheiros do bom e do mau.
O
namoro aconteceu naturalmente, quase sem dares por isso.
E
foi num abrir e fechar de olhos – pelo menos, era assim que te sentias – que te
vistes de casamento marcado.
A
tua família rejubilou com a notícia, assim como a família dele.
Afinal,
quer tu, quer ele, já faziam parte da família do outro. O casamento apenas
simbolizava o confirmar, o oficializar dessa pertença, dessa união.
Apesar
de se tratar do teu casamento, sempre te sentistes deslocada nos preparativos.
Não por serem feitos à tua revelia. Nada disso. Mas por mais que tentasses e
quisesses, nunca te sentistes integrada, incluída.
Até
parecia que era outra pessoa a casar, que não tu.
Na
verdade, a tua indiferença (seria essa a palavra?...) chegou a um a ponto tal,
que prejudicavas mais que ajudavas. Ou pelos menos, isso era o que sentias. Se
bem que prejudicar fosse uma palavra muito forte: tu não prejudicavas, apenas
não ajudavas.
Parecia
que para o teu próprio casamento, estavas indisponível. Nas tintas. Ou assim
fazias crer, a qualquer observador mais distraído.
O
Amílcar…
Ele
não merecia aquela atitude quase displicente, não. Ele merecia mais. E melhor.
A
única coisa que te conseguia apaziguar, de alguma maneira trazer alguma paz de
espírito, era o facto de saberes que tinhas tentado falar com ele.
Mas
a tudo, a todas as tuas tentativas de lhe tentar explicar o que te ia na alma,
de como te sentias, o Amílcar fez questão de fazer ouvidos de mercador.
Isso
não passam de nervos pré-casamento, ele disse, Isso passa.
Tu
bem que lhe tentaste dizer, mas como é que podias culpá-lo por ele teimar em
não te ouvir, quando tu própria não sabias bem, não o sabias pôr em palavras?
Apenas
o sabias sentir.
E
como é que te sentias?
Nem
tu própria sabias… Apenas sabias que o sentias.
Sentias
que ias casar com alguém que era muito teu amigo, que te conhecia quase melhor
do que tu te conhecias a ti própria, mas que não era… o tal.
Que
o casamento era vontade e desejo profundo de Amílcar, disso não tinhas dúvidas.
Ele
gostava de ti, tu sabias que sim. Mas tu também gostavas dele. Apenas não o
amavas. E ele amava-te.
Mas
como dizer-lhe, sem o magoar, que o seu amor não era correspondido?
Porque
isso, para ti, não podia mesmo ser: tu não querias nem podias magoar o Amílcar.
Ele
não merecia.
Mas
tu também assim não podias continuar, com esse vazio, essa coisa qualquer que
se confundia com indiferença, essa por vezes quase dor, dentro de ti: a querer
invadir e consumir a tua alma.
E
duvidavas de ti: se calhar até era assim que te devias sentir. O que tu pensavas
não ser amor, se calhar até era.
Ainda
em frente ao espelho, olhavas para ti do lado de lá e sentias-te dividida: que
fazer? Que dizer? Querias fechar os olhos e esquecer-te. De ti. Do Amílcar.
Quiseste
esquecer o mundo. E muito particularmente o casamento. O teu casamento.
Mas
isso não podia ser. Não, não podia mesmo ser.
E
suspiravas fundo.
“Juliana”
A
tua mãe chamava-te.
“O
que foi?” tu respondeste.
“Anda
cá. O Amílcar está aqui”
Mais
uma vez o teu olhar encontrou-se com o teu no fundo do espelho e mais uma vez
suspiraste fundo, muito fundo, do fundo de ti.
Olhaste
à tua volta e foste. Sabias que aquele era o caminho: apenas não sabias que
direcção tomar.
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