Mara
Lara.
Lara
Mara.
Duas
irmãs. Gémeas. E que não se podiam ver uma à frente da outra.
Não
que elas se detestassem, odiassem ou, pior ainda, se ignorassem. Não, nada
disso. Elas realmente não se podiam ver uma à frente da outra. Literalmente.
Mara
Lara e Lara Mara, para além de serem irmãs gémeas, eram também siamesas. E
estavam unidas pelas costas.
Quando
elas nasceram, ninguém se atreveu a colocar, ainda que remotamente, a hipótese
de serem separadas. Não. Se elas tinham nascido assim, era porque o bom Deus
assim o entendia: elas haviam de aprender a viver assim, pois com toda a
certeza aquela característica tinha, obrigatoriamente, que possuir algum
propósito: Deus escreve sempre direito por linhas tortas, e os pais não
poderiam permitir, de modo algum, que algum qualquer, fosse doutor ou coisa
mais importante, endireitasse as linhas do Senhor. De maneira nenhuma.
E se
os pais assim o entenderam, foi assim que o fizeram.
Mara
Lara e Lara Mara cresceram para a vida tal e qual como vieram ao mundo: de
costas voltadas.
Tornaram-se
cada uma o oposto da outra, dia e noite, sol e lua, Yling e Ylang. Duas metades
distintas de uma só entidade, dois seres a um só viver.
No
entanto, uma não podia viver sem a outra. Não apenas fisicamente, mas para além
disso. As duas completavam-se. Perfeitamente, como um círculo fechado.
E as
duas irmãs agradeciam todas as noites, nas suas orações, a Deus por, na Sua
infinita sabedoria, ter tido a bondade de iluminar os seus pais para decidirem
não as separar.
Mara
Lara e Lara Mara eram felizes.
Até
que aconteceu.
Tinha
que acontecer, não é?...
Era
inevitável.
No que
parecia ser um dia igual a tantos outros, alguém bateu à porta e as irmãs foram
atender.
Quis o
acaso que fosse Mara Lara a abrir a porta.
“Bom dia”, o desconhecido disse “o Sr.
Juvenal está?”
“E
quem quer falar com ele?”
“Diga-lhe
que é o Casimiro.”
“Só um
bocadinho.”
Mara
Lara voltou-se para dentro e enquanto chamava “Pai, é para ti!”, foi com
surpresa que o desconhecido pareceu vislumbrar uma outra rapariga completamente
diferente da primeira: não mais bonita nem mais feia, apenas diferente. Mas não
pensou mais nisso: apenas abanou a cabeça, achando que aquela visão não era
mais que uma qualquer partida dos seus olhos, cansados de já terem visto muita
coisa.
“Miro!...”
exclamou o Sr. Juvenal, surgindo de dentro do escuro “Então, como é que
estás?... Há tanto tempo... Venham daí esses ossos!...”
Depois
de abraçar o tal Miro e pressentindo o olhar inquiridor da mulher, que
entretanto se aproximara, Juvenal rapidamente explicou “Este é o Miro, meu
antigo camarada de armas... Esta é a Augusta, a minha mulher... Mas entra,
entra, não fiques aí especado.”
“Então,
homem”, continuou o Sr. Juvenal, enquanto acompanhava Miro à sala de estar,
sempre seguidos pela D. Augusta “mas diz cá, que é feito de ti?... Por onde é
que tens andado?...”
“Oh”
exclamou Miro “sabes como são estas coisas... um dia aqui, outro dia ali... a
fazer isto, aquilo... Olha, tenho-me desenrascado!...”
“Mas
olha que estás com muito bom aspecto... Não achas, Augusta?”
“É
verdade, sim senhora...Olhe, eu não sei o que o Sr. Miro...”
“Ai,
senhor não!... Só Miro.”
“Seja...
eu não sei o que o Miro tem andado a fazer, mas olhe, bem que podia dar a
receita aqui ao meu Juvenal, para ver se ele perdia esta barriguinha...”
“Não
digas disparates, mulher...” riu-se o Sr. Juvenal. “Bom, mas diz cá homem,
queres beber alguma coisa, assim uma cervejinha para lembrar os bons velhos
tempos?”
“Olha
que uma cervejinha fresquinha até marchava...”
“Então,
está bem... Ó mulher, vai lá buscar duas cervejolas ao frigorífico, se faz
favor...”
Quando
a D. Augusta saiu, o Miro voltou-se para o Sr. Juvenal “Ouve lá, homem, aquela
rapariga que me abriu a porta era a tua filha?”
O
rosto do Sr. Juvenal iluminou-se. “Uma delas. Espera aí, que eu vou chamá-las
para tu as conheceres.”
Simultaneamente
com a saída do Sr. Juvenal, deu-se a entrada da D. Augusta com as duas
cervejas.
“O meu
marido?”
“Foi
chamar as vossas filhas.”
“Ah,
as nossas meninas... São uma benção dos céus.”
Eis
que o Sr. Juvenal entra, acompanhado da mesma rapariga que lhe tinha aberto a
porta.
“Apresento-te
as minhas filhas, Mara Lara e Lara Mara. Meninas, este é o Miro, um velho amigo
do pai.”
“Como
está? Eu sou a Mara Lara.” E estendeu a mão a um Miro cada vez mais atarantado:
filhas?!... Ele só via uma... Onde estava a outra?...
Perdido
nas suas reflexões, embrenhado nas suas questões, foi com surpresa, uma enorme
surpresa, que Miro viu surgir diante dos seus olhos a outra tal rapariga que
lhe tinha parecido vislumbrar anteriormente.
“Eu
sou a Lara Mara.”
Depois
do choque inicial, Miro finalmente percebeu. Gémeas siamesas. Apercebendo-se do
orgulho e desmesurado amor dos pais, ele absteve-se de questionar o porquê de
as raparigas não terem sido separadas em devido tempo: se elas continuavam como
continuavam, alguma razão haveria. E não seria ele, Miro, que iria pôr essas
mesmas razões em causa. No entanto, uma coisa Miro não pode deixar de notar: as
diferenças entre as irmãs. Elas eram gémeas, sim, mas tão diferentes... Tão
diferentes, tão diferentes, que essas mesmas diferenças, em vez de diferenciar,
confundia.
“Almoças
connosco, não é verdade?”, perguntou o Sr. Juvenal.
“Eu
não quero incomodar...”, Miro começou, mas logo foi prontamente interrompido
pelo Sr. Juvenal.
“Incomodas
agora... Não digas disparates, que fazes bem melhor... Fazemos até muito gosto
na tua companhia, não é verdade, mulher?”
“É
verdade, sim senhor” concordou a D. Augusta “Almoce com a gente.”
“Posto
assim... Como é que eu posso recusar?”
“Óptimo!”
exclamou o Sr. Juvenal, esfregando as mãos de contente “Vamos para a mesa.”
“O
almoço é coelho guisado com arroz” disse a D. Augusta “Espero que goste.”
“Oh,
sim” disse, por sua vez, Miro “Muito.”
Á
medida que se aproximavam da mesa, a curiosidade de Miro aumentava cada vez
mais: como é que aquela família comia, como é que eles tinham ultrapassado a
situação causada, ainda que involuntariamente, pelas irmãs?
E se
alguém alguma vez disse que a necessidade aguçava o engenho, ali estava a prova
mais que provada.
A
curiosidade de Miro pode então ser satisfeita.
A mesa
de refeições assemelhava-se a algo como um círculo oco, assim como a lendária
Távola Redonda, mas incompleto: havia uma abertura num dos lados.
Era
por esse lado que as irmãs Mara Lara e Lara Mara entravam, sentando-se ao meio,
viradas cada uma para um lado da mesa.
Os
pais, esses, sentavam-se do lado de fora, cada um em frente de uma das irmãs.
Essas posições eram alternadas, conforme as refeições: aos almoços o Sr. Juvenal
sentava-se em frente de Mara Lara e a D. Augusta em frente de Lara Mara, ao
jantar trocavam.
“Senta-te
aqui, homem.” O Sr. Juvenal indicou a Miro o lugar entre ele próprio e a D.
Augusta, onde assim podia falar com ambas as irmãs.
E elas
eram divertidas. E inteligentes. Mara Lara mais faladora, Lara Mara não tão
exuberante.
Já
depois da refeição, na sala, Miro pode observar que as gémeas se sentavam numa
espécie de puff.
“Onde
é que estás, Miro?”, o Sr. Juvenal perguntou.
“Onde
é que estou?...”
“Sim,
homem. Onde é que estás a dormir?”
“Ah,
isso... Olha, se queres que te diga, não sei.”
“Não
sabes?!”, admirou-se o Sr. Juvenal.
“Não,
ainda não. Estás a ver, só cheguei hoje... Mas ouve lá, já que falas nisso, há
por aqui alguma pensão, residencial, ou coisa que o valha?”
“Haver,
há” começou o Sr. Juvenal “mas para que é que vais gastar o teu rico
dinheirinho, se podes ficar cá em casa?”
“Cá em
casa?!... Não sejas maluco... Já te incomodei demais...”
“Isso
é o que tu dizes... Ficas cá e não se fala mais nisso, ponto final. Não te
importas de dormir aqui no sofá, pois não?...”
“Quem,
eu?... É claro que não, mas olha lá...”
“Olha
lá, o quê?...”
“Não
achas que já estou a abusar?”
O Sr.
Juvenal nada disse, apenas olhou para Miro. Quem falou foram as gémeas.
“Fique.”,
disse Lara Mara.
“Sim,
fique, Sr. Miro”, acrescentou Mara Lara.
Miro
sorriu.
“Eu
fico, mas só com uma condição”
“Qual?”,
as irmãs perguntaram a uma só voz.
“Que
esqueçam o senhor. Esse está no Céu. Chamem-me só Miro.”
Mara
Lara e Lara Mara riram com gosto.
“Combinado”
Miro
já estava na casa do seu amigo Juvenal há algum tempo, pois de cada vez que
dizia que tinha que se ir embora e que já ali estava há mais tempo que a conta,
de uma maneira ou de outra, os donos da casa lá arranjavam maneira de o
convencer a ficar.
Não que Miro se queixasse: não, muito
antes pelo contrário. À hospitalidade de Juvenal, Miro não tinha coisa alguma a
apontar, por mais ínfima que fosse.
Até às
irmãs Miro já se tinha habituado, praticamente esquecendo aquela
particularidade muito delas: o de serem siamesas.
Miro
apreciava especialmente aqueles longos passeios que costumava dar, diariamente,
quase ao final do dia, na companhia das irmãs. A rotina era sempre a mesma: na
ida Miro falava com Mara Lara e, na volta, com Lara Mara. Mas o mais curioso e
o que mais fascinava Miro, era a própria atitude delas nesses passeios: nas
idas, quando Miro era acompanhado (por assim dizer) por Mara Lara, Lara Mara
nada dizia, era como se não existisse. O mesmo acontecia nas voltas, quando
Miro falava com Lara Mara: Mara Lara eclipsava-se. Era como se as irmãs
tivessem a uni-las um interruptor, que elas próprias tratavam de ligar e
desligar.
E elas
gostavam dele, da companhia dele, disso Miro sabia.
Também
Miro gostava delas, da alegria de Mara Lara e da calma de Lara Mara.
Igualmente. Sem distinções.
Mas
ninguém dá nada a ninguém. E a maioria não dá ponto sem nó.
No que
parecia ser um princípio de noite igual às muitas que Miro já ali tinha
passado, o seu amigo Juvenal chamou-o. Para uma conversa séria, disse. De homem
para homem, disse.
“Bom,
aqui me tens. Diz lá o que tens para me dizer”, Miro falou.
“Miro” Juvenal começou “gostas das minhas
filhas?”
“Gosto”
Miro respondeu surpreso.
“Gostas
mesmo?”
“Sim,
gosto muito”
“De
qual gostas mais?”
“Gosto
das duas igualmente, sem preferências” a surpresa de Miro não parava de
aumentar, sem perceber o sentido daquela conversa.
Juvenal
nada disse: apenas sorriu, aparentando satisfação pela resposta dada.
“Mas
ouve lá” Miro começou “que raio de conversa é essa, que eu ainda não percebi
nada?”
“Já lá
vamos, já lá vamos” Juvenal acalmou-o “Tudo a seu tempo...”
Houve
mais um momento de silêncio.
“És
casado?” Juvenal finalmente perguntou.
“Não”
“E
pensas casar algum dia?”
“Não
sei, talvez...”
Silêncio,
outra vez.
“Dizes
que gostas das minhas filhas” Juvenal recomeçou a falar “Muito bem. E se eu te
as oferecesse?”
“Como
é que é?” Miro não queria acreditar no que julgava que tinha acabado de ouvir.
“É isso
tudo que ouviste” Juvenal confirmou “E se eu te as oferecesse?”
“As
duas?”
“As
duas”
“Para
quê?”
“Para
que é que havia de ser?... Para viver como homem e mulher. Ou mulheres...”
Miro
nada disse. Estava demasiado abismado com tudo aquilo que lhe estava a ser dito
e oferecido.
“Sabes”
Juvenal continuou, perante o silêncio de Miro “o meu sonho, como o de qualquer
pai, é o de deixar as filhas bem encaminhadas na vida. Ora, tanto eu como a
minha Augusta não estamos a caminhar para novos. Por isso, gostava de deixar as
minhas meninas bem entregues. Mas isso, como deves calcular, não tem sido nada
fácil, mais a mais com a história de serem siamesas. Era mais fácil procurar
uma agulha num palheiro... Até que tu chegaste, homem. As minhas filhas, é escusado
dizer, gostam muito de ti. Já lhes expliquei a minha ideia e, como já deves
calcular, concordaram imediatamente. Ficaram até muito felizes. A minha Augusta
também está de acordo. E tu, o que é que me dizes?... Nunca mais tinhas que
trabalhar, pois não sendo um homem rico, sempre tenho algumas posses. Que serão
tuas, um dia. E mais, casa, comida e roupa lavada, todos os dias. Isto já para
não falar nas duas mulheres que vais ter na tua cama, todas as noites... Então,
negócio fechado?...”
Miro
ainda não queria acreditar no que lhe tinha acontecido.
Estava
em frente à porta do quarto das irmãs.
Mara
Lara e Lara Mara. As suas mulheres.
Estendeu
a mão para a porta e abriu-a.
Algo
receoso, entrou no quarto envolto em penumbra.
Fechou
a porta do quarto atrás de si.
Após
alguns instantes de habituação, os olhos de Miro puderam distinguir os corpos
das irmãs na cama. Nus.
Miro
aproximou-se, deitou-se sobre elas, e apertou-as num abraço apertado.
Sem comentários:
Enviar um comentário