Mafalda estava furiosa.
Pura e simplesmente furiosa. Fula da
vida.
E quanto mais pensava no assunto, mais
zangada ficava. E mais calma. Também divertida. Era complicado…
Guilherme.
A culpa era dele. Toda dele. Toda e só.
A coisa tinha começado da maneira mais inocente possível: Guilherme
fazia anos, e Mafalda decidiu-lhe dar uma lembrança. Até aí nada de mais, nada
de extraordinário, a coisa mais natural do mundo: um amigo presentear o outro
na altura do seu aniversário. Pois sim.
Mafalda e Guilherme não se podiam
considerar amigos, sim, era verdade, mas e daí?, pensava ela. Mafalda
conhecia-o, Guilherme conhecia-a, durante algum tempo tinham convivido mais de
perto e ela tinha ganho simpatia por ele. Nada mais, nada menos. Só isso.
Por isso, quando Mafalda viu aquilo na
loja, pensou imediatamente nele. Foi automático. E como ela sabia quando
Guilherme festejava o seu aniversário, decidiu comprar aquela prenda. Era
verdade que ainda faltavam alguns meses, mais isso não incomodou Mafalda.
Aliás, aquela prática já era costume nela: via as coisas, lembrava-se das
pessoas, adquiria-as (as coisas, bem entendido), e aguardava pela altura própria: era quase
compulsivo: dar pelo simples prazer de dar.
Até aí, tudo bem.
E chegou o aniversário de Guilherme.
Sem deixar que ele falasse, logo Mafalda
lhe estendeu, algo orgulhosamente, a prenda escolhida: a surpresa manifesta no
olhar dele foi por demais evidente: Guilherme não estava mesmo à espera.
Depois de agradecer, assim a modos que
atabalhoadamente, acrescente-se, Guilherme disse algo que mais valia nunca ter
dito: “Não sei se me destes isto para ficares bem vista…”.
Mafalda ficou gelada. E zangada.
Magoada, também. Tudo por causa daquelas três palavras: “ficares bem vista”.
“Ficares bem vista?”, “Ficares bem vista?”…. Bem vista, o
tanas!… É que foi mesmo a pensar nisso que Mafalda tinha comprado aquela prenda
– fora isso e peixe para o gato.
Ora bolas, ela pensava que Guilherme a
conhecia um bocadinho melhor que isso.
Ele com certeza que leu nos olhos dela a
ferida aberta por aquelas três malfadadas palavras e a seguir ainda tentou pôr
água na fervura, ou seja, tentou dar o dito pelo não dito, dar a volta ao
prego.
Mas sem sucesso.
As palavras tinham sido lançadas e já
nada as podia apagar.
Não obstante a mágoa, Mafalda achou piada
às tentativas de Guilherme em fazê-la esquecer o inesquecível: “ficares bem
vista”: não que Mafalda fosse um pessoa de guardar rancor, rancorosa, não, nada
disso – mas havia coisas que não se podiam esquecer… E Mafalda tinha uma
excelente memória…
Depois de obrigar-se a isso, Mafalda
reconheceu que nem todos pensavam como ela, com aquele quase desprezo pelo
dinheiro (até parecia que não lhe custava a ganhar) e aquela paixão quase
desproporcionada em dar prendas. Talvez fosse difícil a Guilherme entender esse
traço da personalidade dela…
Já Mafalda estava quase pronta a varrer
aquela frase da sua mente para debaixo de um qualquer tapete, quando Guilherme
fez uma pergunta que ela não gostou: “Quando é que fazes anos?”.
A ferida que estava quase fechada,
recomeçou a sangrar: também não tenha sido a pensar nisso, em receber prendas,
que Mafalda tinha presenteado Guilherme. Não tinha?… Se Mafalda pusesse a mão
na consciência, de certeza que não era esse o motivo, se bem que muito
escondido, que levava Mafalda a presentear os outros?… A resposta saiu curta e
inequívoca: não. Quando muito, e aí Mafalda estava disposta a fazer uma
concessão, poderia ter algo a ver com o facto de amigos e conhecidos raramente
se lembrarem do aniversário dela. Então lembrava-se ela dos aniversários deles…
Mas quando Mafalda os presenteava nunca que nunca era à espera de algo em
troca. A sério. Ela apenas gostava de dar.
Podia parecer esquisito, contra–natura
até, mas Mafalda era assim: apesar de quase sempre esquecida, não sabia porquê,
não fazia mesmo nenhum esforço para isso, lembrava-se sempre dos aniversários
de quem conhecia. E fazia sempre questão de, se não comprar uma lembrança, pelo
menos ter uma palavra de felicidades. Pois era forte convicção de Mafalda que
todos, mesmo todos – até aqueles que diziam não ligar nenhuma a isso –, ficavam
deleitados com aquela simples atenção, de alguém se lembrar do dia deles. É que
era esse o sentimento de Mafalda: adorava quando alguém se lembrava do
aniversário dela: mais do que receber prendas, o que para ela era mais
importante era o facto de ser lembrada. Uma simples palavra, era o que bastava.
E agora Guilherme queria saber quando é
que ela fazia anos.
Mas Mafalda não lhe disse: se ela tinha
sido capaz de descobrir o aniversário dele, ele também havia de ser capaz de
descobrir o dela. Só era preciso vontade.
Era
pirraça, Mafalda sabia-o, mas a verdade é que ela não fazia a mínima intenção
de facilitar a vida a Guilherme: se ele quisesse saber, que pusesse os
neurónios a funcionar: era tudo dado e arregaçado, não?… Isso é que era belo:
não queria ele mais nada…
“Tudo bem, eu cá me hei-de arranjar”
Mafalda não pode deixar de pensar ter
notado um leve traço de aborrecimento na voz de Guilherme – mas podia ser só
sugestão.
Bom, a conversa estava muito boa (mas
qual conversa, Mafalda muito gostaria de saber), mas ele tinha que ir. Depois
de mais uma vez agradeçer a prenda, Guilherme despediu-se.
Ao observá-lo enquanto ele se afastava,
Mafalda não pode evitar um meio sorriso, apesar de ainda magoada: sempre queria
ver se Guilherme realmente se ia dar ao trabalho de descobrir o aniversário
dela: já agora, estava curiosa.
Mas para isso, teria que esperar para
ver…
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