sábado, 11 de fevereiro de 2012

A casa do assassino


        Foi ele!
        Foi ele, agora sei-o.
     Ao princípio não acreditava, mas agora já não tenho dúvidas: tenho certezas, e as que tenho, foi ele quem me as deu.
        Ele matou.
        O meu menino, o meu querido menino...

        Quem diria que tal iria acontecer há décadas atrás, quando ele nasceu?...
        Lembro-me desse dia como se fosse hoje.
        Lembro-me também da azáfama, do corre corre, da confusão instalada – água quente, mais água quente, cada vez mais água quente.
        Lembro-me ainda da alegria dos pais, quando finalmente o puderam receber nos seus braços: o seu filho, o seu filho muito querido e muito desejado, o seu primogénito.
        E lembro-me principalmente dele, do meu querubinzinho, do meu mais que tudo. O meu menino, o Afonso.
        Ele devia ser, com toda a certeza, o bebé mais bonito, mais lindo, mais encantador, mais enternecedor, mais mais mais, de todo o mundo e arredores, pois poderia lá haver criança mais perfeitinha e mais bem comportada, com olhos mais profundos e bochechas mais rosadas?... Com certeza que não.
        O Afonsinho, como depressa se tornou conhecido, foi, a todos os níveis, uma criança muito amada por todos. E quando digo todos, quero mesmo dizer isso mesmo: todos, todos e mais algum, pois era impossível a quem quer que fosse ficar indiferente ao seu encanto, ou fosse lá o que fosse. A ele, ao Afonsinho, não havia resistência ou imunidade que pudesse valer. E era escusado procurar vacina: não havia. Muitos tentaram, e muitos falharam. Redondamente. Lembro-me de pensar que quando crescesse, ele havia de ser o ai Jesus das meninas, pior que o Deus me livre.
        Pelos avós, então, não há palavras para descrever o quanto ele foi mimado e apaparicado. Quer de um lado quer do outro, ou seja, quer pelos avós paternos quer pelos avós maternos. Primeiro neto dos dois lados, está-se mesmo a ver o resultado... Não que eu tenha algo a dizer ou criticar, nada disso. Aliás, nem me cabe a mim apontar o dedo a quem quer que seja. E mesmo que coubesse, também não o fazia, não o apontava, pela muito simples razão que continuo a achar que não há qualquer razão para isso. Apesar de tudo.
        Não me posso esquecer que eu também fazia todas as vontadinhas ao meu menino. Para mim, os desejos do Afonsinho eram ordens. Que eu tratava de cumprir, desse lá por onde desse.
        Mas não pensem que era só eu, ou os avós, paternos e maternos, que mimavam o Afonsinho. Porque não éramos. Nada mais longe da verdade. Também existiam os pais. E desses, então, é bom nem falar... Mas vou falar: esses não se limitavam a amar, a adorar o meu menino. Na verdade, e agora com esta distância a separar-nos, posso dizer com relativa segurança que eles quase que abafavam, sufocavam o filho com tanto carinho e atenção.
        Agora, se estão com a impressão que o meu menino se tornou, ao crescer, num chamado “mariquinhas pé de salsa”, sempre agarrado à barra da saia da mãe, posso-vos assegurar, com toda a certeza e mais alguma, que tal não podia ser mais falso, estar mais longe da verdade.
        Tornou-se sim, e conforme eu lhe tinha vaticinado, num enorme “pinga-amor”.
        Não havia menina ou mulher que lhe resistisse. Ou rapazes. Ou homens, daqueles já feitos, casados e com filhos e tudo. Ninguém.
        O meu menino Afonsinho tinha qualquer coisa... não sei explicar muito bem, mas havia nele algo de inatingível, qualquer coisa que não era palpável, mas que todos queriam agarrar – e atenção, quando eu digo todos, quero mesmo dizer todos, pois até eu me incluo nesse rol.
        Mesmo sem ser o que eu consideraria excepcionalmente bonito, o Afonsinho era algo mais: atravessava, com uma perna às costas, todas essas ridículas definições terrenas. O Afonsinho era bem mais que isso. O Afonsinho era especial. O Afonsinho era o Afonsinho. O meu menino.
        Namoradas teve muitas, umas mais ocasionais que outras. E eu não gostei de nenhuma. Nunca. Faltava-lhes sempre qualquer coisa para estarem à altura do meu menino. É, o meu olho clínico tratava sempre de lhes arranjar algum defeito. Nem mesmo a mãe dele, do meu menino, conseguia ser tão exigente como eu: na verdade, ela até era bem mais indulgente. Ela, que deveria ser das partes mais interessadas, não parecia dar grande atenção ao desastre cujos contornos começavam a tomar forma. Sim, desastre. E não, não estou a exagerar. Afinal, era da felicidade futura do Afonsinho que se tratava, e não podia ser uma qualquer que iria estar à altura de tão hercúlea tarefa. Pois, pois, eu já sei, não preciso que me o digam: este meu discurso até parece o de uma pessoa despeitada. Ciúmes, dirão. E querem saber a minha resposta? Se calhar tem razão. Eh, eh, então, que é isso?... Não comecem já a embandeirar em arco, que eu disse se calhar: se calhar... assim como em talvez, provavelmente, e por aí adiante...
        Eu bem que tentei, oh se tentei, alertar o meu menino para as inúmeras e flagrantes faltas das eleitas não sei se do seu coração se de outra parte qualquer da sua anatomia, mas em vão. Ele nunca me ouviu.
        E chegou o dia em que ele atingiu a maioridade. Dezoito anos. Dezoito maravilhosos anos. Era um homem. Já não era o Afonsinho, era o Afonso. Mas era ainda o meu menino.
        Esse foi um dia que eu jamais posso esquecer. Por mais anos que a minha existência se possa prolongar no tempo, eu nunca esquecerei esse dia. Por diversas razões, a principal sendo a Eunice.
        Ou Nice, como era chamada. Mas não por mim, nunca por mim.
        Essa tal era apenas uma das mais que constavam da muito extensa lista do meu menino, assim eu me lembro de pensar.
        Puro engano.
        Logo de início não gostei dela. Não gostei mesmo nada.
        Verdade seja dita, ela até não era antipática. Nem desagradável. Nem feia como os trovões. Nem estúpida. A Eunice não era nada destas coisas, sim, mas eu continuava a não gostar dela. Era mais forte que eu. Assim que eu pousei os meus olhos na figurinha graciosa dela, todos os meus alertas dispararam. Mas ninguém quis saber.
        Indiferente ao meu muito profundo desagrado, o Afonso tratou de tornar a Eunice uma visita frequente, cada vez mais frequente, sempre mais frequente.
        Tanta frequência só podia dar para o torto... E deu, oh se deu.... Deu, e de que maneira...
        Deu em casamento, ora aí está o torto em que deu, e mais não podia dar.
        Já não era nenhuma criança: era o Sr. D. Afonso.
        Mas eu cá continuava a vê-lo como aquele menino de calções a correr no meio das ervas, a rir alto, com os caracolinhos do cabelo ao vento. O meu menino. Era assim que eu via, continuo a vê-lo, e vou ver sempre. Eternamente.
        O Sr. D. Afonso e a Sra. D. Eunice.
        O novo casal da família.
        Eu não gostava da Eunice, já aqui o disse, mas com o passar do tempo tive que me render às evidências: ela até que nem era má esposa. Pelo menos, tratava bem do meu menino. E isso era o mais importante.
        E quando a Eunice ficou grávida, eu até me consegui sentir feliz. Pelos dois.
        Quem diria... Parecia que tinha sido ainda ontem que o meu menino tinha nascido, e agora ia ser pai. O tempo passa mesmo a correr... a voar, até... Quando damos por isso, o amanhã já é ontem...
        Quando a criança nasceu, achei que tudo era perfeito, e que eu não podia ser mais feliz: era um menino. Tal e qual o pai.
        Chamaram-lhe Bernardo.
        Bernardinho.
        Lindo, lindo como o pai.
        Durante algum tempo tudo correu pelo melhor, mas depois...
        Não sei exactamente dizer quando, como foi, ou o que aconteceu, mas sei dizer que a Eunice e o Afonso começaram a discutir. Cada vez com mais frequência.
        Ao princípio, e digo-o com sinceridade, fiz orelhas moucas ao que eles diziam, ouvidos de mercador.
        Só que se ao princípio eles ainda se preocupavam em confinar as discussões ao quarto de dormir, depressa isso acabou: eles agora discutiam em qualquer lugar sem se importar com quem pudesse ouvir. De tal forma, que só um surdo é que não ouvia.
        Eu não o sou.
        Antes pelo contrário, tenho até uma excelente audição.
        E foi assim que eu tive conhecimento do que os apoquentava: dinheiro. Ou melhor, a falta dele. E o pior, é que o meu menino parecia não se importar. E isso enfurecia Eunice, pois ela queria que o marido fizesse alguma coisa, que trabalhasse... Trabalhar? Isso é que era belo: ele nunca tinha mexido uma palha para ter o que quer que fosse, e não ia começar agora... Oh, Afonso, mas agora os tempos são outros: tens mulher e filho para sustentar... Pois, pois. E porque é que não trabalhas tu, posso saber? Ou será que te achas muito boa para trabalhar?... Afonso, meu monte de merda ambulante, sabes muito bem que não é isso. Eu até ia trabalhar, e com muito gosto, se não fosse o Bernardinho, o teu filho... Hã, e o que é que o puto tem a ver com isso?... Tem tudo! Se eu fosse trabalhar, com quem é que a criança ficava? Com os teus pais? Estão velhos e cansados, e já não podem com uma gata pelo rabo. Com os meus pais não pode ser, que eles moram longe. Contigo? Não me faças rir. Então com quem?... Na creche, olha que essa. É para isto é que elas existem... Ah pois existem. E com que dinheiro lhe vais pagar, posso saber?... (Silêncio.) Vá lá, diz-me lá tu, que sabes tudo e tens sempre resposta, com que dinheiro é que vamos pagar à creche? Sim, porque se me souberes responder, vou já lá inscrever o Bernardinho amanhã logo de manhã... (Silêncio.) Então, não dizes nada? Já sei, vamos utilizar o dinheiro do teu trabalho, é isso? Mas tu não trabalhas, ou já te esqueces-te desse pequeno pormenor?... Cala-te! Cala-te! Cala-te!
        Aquela situação entristecia-me.
        E foi com muita dor na alma que me vi na obrigação de dar razão à Eunice.
        Quando nada o fazia prever, o meu menino começou a passar os dias fora de casa e a só aparecer à noite.
        Mas não era só isso: ele andava bem disposto, mesmo muito bem disposto. Estranhamente bem disposto.
        Com receio de estragar a boa disposição do marido, Eunice absteve-se de fazer comentários.
        Mas a sua surpresa não parava de aumentar.
        E a mesma ficou completa quando, uns dias depois, Afonso apareceu na frente da mulher com um enorme maço de notas novinhas em folha: dinheiro, muito dinheiro.
        O que é isso, homem de Deus?... Então não vês? É dinheiro... Que é dinheiro, vejo eu bem. Mas do quê?... Do que é que havia de ser? Do meu trabalho... Trabalho?! A sério que estás a trabalhar?... Olarila!...
        Eunice ficou tão feliz, que nessa noite houve festa. Mas confinada ao quarto deles. Melhor dizendo, à cama – rangia por tudo o que era sítio, coitada.
        Nove meses depois, veio ao mundo o resultado: uma menina: a Conceição. A Sãozinha.
Dava gosto vê-los todos juntos: o Afonso, a Eunice, o Bernardinho e a Sãozinha. Eram uma linda família.
E feliz.
Aconteceu que numa noite, enquanto jantavam, o meu olhar foi atraído para as notícias que passavam na televisão: falavam da morte, em circunstâncias altamente suspeitas, de um muito conhecido industrial. Falaram também de um homem, amigo do falecido, que poderia deitar alguma luz sobre o sucedido.
Ao mostrarem a fotografia do tal amigo, algo dentro de mim estremeceu: aquele homem... Eu já o conhecia... Não sabia era dizer de onde...
Felizmente que nem Eunice nem as crianças se aperceberam de tal notícia, pois estavam mais interessados na sobremesa: os filhos em comerem o mais possível, a mãe em evitar isso mesmo.
Ninguém, a não ser eu, tinha-se apercebido de tão triste notícia.
Eu, e o Afonso.
Afonso, o que é que tu tens?... Hã, o quê?... O que é que tu tens?... O que é que eu tenho?!... Pois, estás tão esquisito... Ah, não é nada, não é nada... De certeza? Estás tão branco – até parece que viste um fantasma... Oh, mulher, deixa-me em paz, se eu já disse que não é nada...
A partir daquele momento, nada voltou a ser com dantes.
A alegria do Afonso, o meu menino, parecia que o tinha deixado. Para sempre.
Já nem os filhos conseguiam colocar um sorriso naquele rosto lindo, por mais amarelo que fosse: parecia que o meu menino definhava um pouco mais a cada dia.
E então soube.
Afonso, desculpa lá, mas o que é que se passa contigo?... (Silêncio.) Vá lá homem, fala comigo. Sou a tua mulher ou não sou?... (Silêncio.) Afonso, diz-me o que se passa. Olha que até os teus filhos já se aperceberam de que alguma coisa se está a passar... (Suspiro fundo.) Queres mesmo saber?... Claro! Sou a tua mulher, tenho o direito de saber o que se passa contigo... Então, está bem, cá vai, mas depois não te esqueças que foste tu que quiseste saber...
Bom, a Eunice lembrava-se daquele amigo dele, o Tozé?... Qual Tozé, aquele muito alto e muito moreno, com um bigode muito farfalhudo?... Esse mesmo. Como também ela se havia de lembrar, ele ainda foi algumas vezes, não muitas, à casa deles...
(Então era daí que eu conhecia aquele homem que apareceu nas notícias... Eu cá sabia que ele não me era estranho... Bom, o mistério estava esclarecido. Pelo menos, parcialmente.)
...Pois bem, tinha sido através desse amigo que ele tinha arranjado trabalho, só que era um trabalho que não era propriamente honesto. Que a Eunice não se assusta-se, que também não era propriamente desonesto. Eles limitavam-se a aliviar as bolsas de quem tinha muito e não precisava. Assim como assim, umas espécies de Robin dos Bosques. A única diferença era que eles não distribuíam o dinheiro pelos pobres. Distribuíam-no entre eles, que também não eram ricos. Pois bem, a coisa ia de vento em popa, quando o Tozé se lembra de aplicar o golpe a um amigo dele, um tal industrial muito rico. Até aí, não houve qualquer problema. O pior veio depois... Quando estavam, o Tozé e ele, a falar com o industrial, o homem desconfiou de alguma coisa. E ameaçou chamar a polícia. Ora, ele já não se lembrava muito bem do que tinha acontecido a seguir, mas parecia-lhe, parecia-lhe, que no meio daquela confusão toda, ele tinha dado um valente encontrão ao industrial. Acontecia que estavam num terceiro andar e, como tal, o homem tinha caído dessa altura. O Tozé depressa tomou o controle da situação: disse para o Afonso fugir, que ele próprio ficava e chamava a ambulância. E o Afonso que não se preocupasse, que ele ia ficar de bico fechado, porque afinal de contas, o negócio também era dele e, sendo assim, ele também estava implicado. Quanto ao resto, não havia problema: o Tozé era amigo do industrial, e diria que o outro se tinha desequilibrado. Depois, olha, depois logo se via. Só que o pior aconteceu: o gajo, o industrial, bateu a bota. Se calhar não resistiu aos ferimentos. Sim, porque ele tinha quase a certeza de ter visto o industrial a olhar para ele com os olhos bem vivos e bem abertos... Mas se calhar também tinha  imaginado isso... O que interessava era que o industrial tinha morrido. Devido à queda. Queda essa que tinha um responsável.
Como, que história era aquela?... A Eunice não tinha ouvido bem, não podia.
Ouviu, ouviu. Ouviu até muito bem. Ele era o responsável pela morte de um homem. Ele mesmo. Afonso.
O meu menino.
O quê?... Ele, ele, o marido dela, era o responsável pela morte de um homem?...
Sim, tudo assim o levava a crer. Ele não o tinha feito de propósito, é claro, mas mesmo assim...
Não, não podia ser... O homem com quem ela dormia tinha morto... Era, era uma assassino!
Assassino?!... Calminha aí...
Assassino!... Sim, sim, ele era um assassino...
Qual assassino, qual carapuça!... E, por favor, ela que falasse mais baixo...
Assassino! Assassino!
Ó pá, ela que se calasse, por tudo o que era mais sagrado... Mas, mas, aonde é que ela ia?... Ei, ei,... Nice! Nice!... Eunice!
Ela fugia, e enquanto isso, veio-me à memória aquela minha antipatia para com ela, entretanto já quase esquecida. Mas eu tinha razão: os meus instintos não me tinham enganado.
Agora, era comigo.
Assassino ou não, ele era ainda o meu menino.
E cabia-me a mim continuar a velar pela sua segurança.
Como sempre o tinha feito.
Eu. O seu castelo. A sua fortaleza.
A sua casa.

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