Foi
ele!
Foi
ele, agora sei-o.
Ao
princípio não acreditava, mas agora já não tenho dúvidas: tenho certezas, e as
que tenho, foi ele quem me as deu.
Ele
matou.
O meu
menino, o meu querido menino...
Quem
diria que tal iria acontecer há décadas atrás, quando ele nasceu?...
Lembro-me
desse dia como se fosse hoje.
Lembro-me
também da azáfama, do corre corre, da confusão instalada – água quente, mais
água quente, cada vez mais água quente.
Lembro-me
ainda da alegria dos pais, quando finalmente o puderam receber nos seus braços:
o seu filho, o seu filho muito querido e muito desejado, o seu primogénito.
E
lembro-me principalmente dele, do meu querubinzinho, do meu mais que tudo. O
meu menino, o Afonso.
Ele
devia ser, com toda a certeza, o bebé mais bonito, mais lindo, mais encantador,
mais enternecedor, mais mais mais, de todo o mundo e arredores, pois poderia lá
haver criança mais perfeitinha e mais bem comportada, com olhos mais profundos
e bochechas mais rosadas?... Com certeza que não.
O
Afonsinho, como depressa se tornou conhecido, foi, a todos os níveis, uma
criança muito amada por todos. E quando digo todos, quero mesmo dizer isso
mesmo: todos, todos e mais algum, pois era impossível a quem quer que fosse
ficar indiferente ao seu encanto, ou fosse lá o que fosse. A ele, ao Afonsinho,
não havia resistência ou imunidade que pudesse valer. E era escusado procurar
vacina: não havia. Muitos tentaram, e muitos falharam. Redondamente. Lembro-me
de pensar que quando crescesse, ele havia de ser o ai Jesus das meninas, pior
que o Deus me livre.
Pelos
avós, então, não há palavras para descrever o quanto ele foi mimado e
apaparicado. Quer de um lado quer do outro, ou seja, quer pelos avós paternos
quer pelos avós maternos. Primeiro neto dos dois lados, está-se mesmo a ver o
resultado... Não que eu tenha algo a dizer ou criticar, nada disso. Aliás, nem
me cabe a mim apontar o dedo a quem quer que seja. E mesmo que coubesse, também
não o fazia, não o apontava, pela muito simples razão que continuo a achar que
não há qualquer razão para isso. Apesar de tudo.
Não me
posso esquecer que eu também fazia todas as vontadinhas ao meu menino. Para
mim, os desejos do Afonsinho eram ordens. Que eu tratava de cumprir, desse lá
por onde desse.
Mas
não pensem que era só eu, ou os avós, paternos e maternos, que mimavam o
Afonsinho. Porque não éramos. Nada mais longe da verdade. Também existiam os
pais. E desses, então, é bom nem falar... Mas vou falar: esses não se limitavam
a amar, a adorar o meu menino. Na verdade, e agora com esta distância a
separar-nos, posso dizer com relativa segurança que eles quase que abafavam,
sufocavam o filho com tanto carinho e atenção.
Agora,
se estão com a impressão que o meu menino se tornou, ao crescer, num chamado
“mariquinhas pé de salsa”, sempre agarrado à barra da saia da mãe, posso-vos
assegurar, com toda a certeza e mais alguma, que tal não podia ser mais falso,
estar mais longe da verdade.
Tornou-se
sim, e conforme eu lhe tinha vaticinado, num enorme “pinga-amor”.
Não
havia menina ou mulher que lhe resistisse. Ou rapazes. Ou homens, daqueles já
feitos, casados e com filhos e tudo. Ninguém.
O meu
menino Afonsinho tinha qualquer coisa... não sei explicar muito bem, mas havia
nele algo de inatingível, qualquer coisa que não era palpável, mas que todos
queriam agarrar – e atenção, quando eu digo todos, quero mesmo dizer todos,
pois até eu me incluo nesse rol.
Mesmo
sem ser o que eu consideraria excepcionalmente bonito, o Afonsinho era algo
mais: atravessava, com uma perna às costas, todas essas ridículas definições
terrenas. O Afonsinho era bem mais que isso. O Afonsinho era especial. O
Afonsinho era o Afonsinho. O meu menino.
Namoradas
teve muitas, umas mais ocasionais que outras. E eu não gostei de nenhuma.
Nunca. Faltava-lhes sempre qualquer coisa para estarem à altura do meu menino.
É, o meu olho clínico tratava sempre de lhes arranjar algum defeito. Nem mesmo
a mãe dele, do meu menino, conseguia ser tão exigente como eu: na verdade, ela
até era bem mais indulgente. Ela, que deveria ser das partes mais interessadas,
não parecia dar grande atenção ao desastre cujos contornos começavam a tomar
forma. Sim, desastre. E não, não estou a exagerar. Afinal, era da felicidade
futura do Afonsinho que se tratava, e não podia ser uma qualquer que iria estar
à altura de tão hercúlea tarefa. Pois, pois, eu já sei, não preciso que me o
digam: este meu discurso até parece o de uma pessoa despeitada. Ciúmes, dirão.
E querem saber a minha resposta? Se calhar tem razão. Eh, eh, então, que é
isso?... Não comecem já a embandeirar em arco, que eu disse se calhar: se
calhar... assim como em talvez, provavelmente, e por aí adiante...
Eu bem
que tentei, oh se tentei, alertar o meu menino para as inúmeras e flagrantes
faltas das eleitas não sei se do seu coração se de outra parte qualquer da sua
anatomia, mas em vão. Ele nunca me ouviu.
E
chegou o dia em que ele atingiu a maioridade. Dezoito anos. Dezoito
maravilhosos anos. Era um homem. Já não era o Afonsinho, era o Afonso. Mas era
ainda o meu menino.
Esse
foi um dia que eu jamais posso esquecer. Por mais anos que a minha existência
se possa prolongar no tempo, eu nunca esquecerei esse dia. Por diversas razões,
a principal sendo a Eunice.
Ou
Nice, como era chamada. Mas não por mim, nunca por mim.
Essa
tal era apenas uma das mais que constavam da muito extensa lista do meu menino,
assim eu me lembro de pensar.
Puro
engano.
Logo
de início não gostei dela. Não gostei mesmo nada.
Verdade
seja dita, ela até não era antipática. Nem desagradável. Nem feia como os
trovões. Nem estúpida. A Eunice não era nada destas coisas, sim, mas eu
continuava a não gostar dela. Era mais forte que eu. Assim que eu pousei os
meus olhos na figurinha graciosa dela, todos os meus alertas dispararam. Mas
ninguém quis saber.
Indiferente
ao meu muito profundo desagrado, o Afonso tratou de tornar a Eunice uma visita
frequente, cada vez mais frequente, sempre mais frequente.
Tanta
frequência só podia dar para o torto... E deu, oh se deu.... Deu, e de que
maneira...
Deu em
casamento, ora aí está o torto em que deu, e mais não podia dar.
Já não
era nenhuma criança: era o Sr. D. Afonso.
Mas eu
cá continuava a vê-lo como aquele menino de calções a correr no meio das ervas,
a rir alto, com os caracolinhos do cabelo ao vento. O meu menino. Era assim que
eu via, continuo a vê-lo, e vou ver sempre. Eternamente.
O Sr.
D. Afonso e a Sra. D. Eunice.
O novo
casal da família.
Eu não
gostava da Eunice, já aqui o disse, mas com o passar do tempo tive que me
render às evidências: ela até que nem era má esposa. Pelo menos, tratava bem do
meu menino. E isso era o mais importante.
E
quando a Eunice ficou grávida, eu até me consegui sentir feliz. Pelos dois.
Quem
diria... Parecia que tinha sido ainda ontem que o meu menino tinha nascido, e
agora ia ser pai. O tempo passa mesmo a correr... a voar, até... Quando damos
por isso, o amanhã já é ontem...
Quando
a criança nasceu, achei que tudo era perfeito, e que eu não podia ser mais
feliz: era um menino. Tal e qual o pai.
Chamaram-lhe
Bernardo.
Bernardinho.
Lindo,
lindo como o pai.
Durante
algum tempo tudo correu pelo melhor, mas depois...
Não
sei exactamente dizer quando, como foi, ou o que aconteceu, mas sei dizer que a
Eunice e o Afonso começaram a discutir. Cada vez com mais frequência.
Ao
princípio, e digo-o com sinceridade, fiz orelhas moucas ao que eles diziam,
ouvidos de mercador.
Só que
se ao princípio eles ainda se preocupavam em confinar as discussões ao quarto
de dormir, depressa isso acabou: eles agora discutiam em qualquer lugar sem se
importar com quem pudesse ouvir. De tal forma, que só um surdo é que não ouvia.
Eu não
o sou.
Antes
pelo contrário, tenho até uma excelente audição.
E foi
assim que eu tive conhecimento do que os apoquentava: dinheiro. Ou melhor, a
falta dele. E o pior, é que o meu menino parecia não se importar. E isso
enfurecia Eunice, pois ela queria que o marido fizesse alguma coisa, que
trabalhasse... Trabalhar? Isso é que era belo: ele nunca tinha mexido uma palha
para ter o que quer que fosse, e não ia começar agora... Oh, Afonso, mas agora
os tempos são outros: tens mulher e filho para sustentar... Pois, pois. E
porque é que não trabalhas tu, posso saber? Ou será que te achas muito boa para
trabalhar?... Afonso, meu monte de merda ambulante, sabes muito bem que não é
isso. Eu até ia trabalhar, e com muito gosto, se não fosse o Bernardinho, o teu
filho... Hã, e o que é que o puto tem a ver com isso?... Tem tudo! Se eu fosse
trabalhar, com quem é que a criança ficava? Com os teus pais? Estão velhos e
cansados, e já não podem com uma gata pelo rabo. Com os meus pais não pode ser,
que eles moram longe. Contigo? Não me faças rir. Então com quem?... Na creche,
olha que essa. É para isto é que elas existem... Ah pois existem. E com que
dinheiro lhe vais pagar, posso saber?... (Silêncio.) Vá lá, diz-me lá tu, que
sabes tudo e tens sempre resposta, com que dinheiro é que vamos pagar à creche?
Sim, porque se me souberes responder, vou já lá inscrever o Bernardinho amanhã
logo de manhã... (Silêncio.) Então, não dizes nada? Já sei, vamos utilizar o
dinheiro do teu trabalho, é isso? Mas tu não trabalhas, ou já te esqueces-te
desse pequeno pormenor?... Cala-te! Cala-te! Cala-te!
Aquela
situação entristecia-me.
E foi
com muita dor na alma que me vi na obrigação de dar razão à Eunice.
Quando
nada o fazia prever, o meu menino começou a passar os dias fora de casa e a só
aparecer à noite.
Mas
não era só isso: ele andava bem disposto, mesmo muito bem disposto.
Estranhamente bem disposto.
Com
receio de estragar a boa disposição do marido, Eunice absteve-se de fazer
comentários.
Mas a
sua surpresa não parava de aumentar.
E a
mesma ficou completa quando, uns dias depois, Afonso apareceu na frente da
mulher com um enorme maço de notas novinhas em folha: dinheiro, muito dinheiro.
O que
é isso, homem de Deus?... Então não vês? É dinheiro... Que é dinheiro, vejo eu
bem. Mas do quê?... Do que é que havia de ser? Do meu trabalho... Trabalho?! A
sério que estás a trabalhar?... Olarila!...
Eunice
ficou tão feliz, que nessa noite houve festa. Mas confinada ao quarto deles.
Melhor dizendo, à cama – rangia por tudo o que era sítio, coitada.
Nove
meses depois, veio ao mundo o resultado: uma menina: a Conceição. A Sãozinha.
Dava gosto vê-los todos juntos: o Afonso, a Eunice,
o Bernardinho e a Sãozinha. Eram uma linda família.
E feliz.
Aconteceu que numa noite, enquanto jantavam, o meu
olhar foi atraído para as notícias que passavam na televisão: falavam da morte,
em circunstâncias altamente suspeitas, de um muito conhecido industrial.
Falaram também de um homem, amigo do falecido, que poderia deitar alguma luz
sobre o sucedido.
Ao mostrarem a fotografia do tal amigo, algo dentro
de mim estremeceu: aquele homem... Eu já o conhecia... Não sabia era dizer de
onde...
Felizmente que nem Eunice nem as crianças se
aperceberam de tal notícia, pois estavam mais interessados na sobremesa: os
filhos em comerem o mais possível, a mãe em evitar isso mesmo.
Ninguém, a não ser eu, tinha-se apercebido de tão
triste notícia.
Eu, e o Afonso.
Afonso, o que é que tu tens?... Hã, o quê?... O que
é que tu tens?... O que é que eu tenho?!... Pois, estás tão esquisito... Ah,
não é nada, não é nada... De certeza? Estás tão branco – até parece que viste
um fantasma... Oh, mulher, deixa-me em paz, se eu já disse que não é nada...
A partir daquele momento, nada voltou a ser com
dantes.
A alegria do Afonso, o meu menino, parecia que o
tinha deixado. Para sempre.
Já nem os filhos conseguiam colocar um sorriso
naquele rosto lindo, por mais amarelo que fosse: parecia que o meu menino
definhava um pouco mais a cada dia.
E então soube.
Afonso, desculpa lá, mas o que é que se passa
contigo?... (Silêncio.) Vá lá homem, fala comigo. Sou a tua mulher ou não
sou?... (Silêncio.) Afonso, diz-me o que se passa. Olha que até os teus filhos
já se aperceberam de que alguma coisa se está a passar... (Suspiro fundo.)
Queres mesmo saber?... Claro! Sou a tua mulher, tenho o direito de saber o que
se passa contigo... Então, está bem, cá vai, mas depois não te esqueças que
foste tu que quiseste saber...
Bom, a Eunice lembrava-se daquele amigo dele, o
Tozé?... Qual Tozé, aquele muito alto e muito moreno, com um bigode muito
farfalhudo?... Esse mesmo. Como também ela se havia de lembrar, ele ainda foi
algumas vezes, não muitas, à casa deles...
(Então era daí que eu conhecia aquele homem que
apareceu nas notícias... Eu cá sabia que ele não me era estranho... Bom, o
mistério estava esclarecido. Pelo menos, parcialmente.)
...Pois bem, tinha sido através desse amigo que ele
tinha arranjado trabalho, só que era um trabalho que não era propriamente
honesto. Que a Eunice não se assusta-se, que também não era propriamente
desonesto. Eles limitavam-se a aliviar as bolsas de quem tinha muito e não
precisava. Assim como assim, umas espécies de Robin dos Bosques. A única
diferença era que eles não distribuíam o dinheiro pelos pobres. Distribuíam-no
entre eles, que também não eram ricos. Pois bem, a coisa ia de vento em popa,
quando o Tozé se lembra de aplicar o golpe a um amigo dele, um tal industrial
muito rico. Até aí, não houve qualquer problema. O pior veio depois... Quando
estavam, o Tozé e ele, a falar com o industrial, o homem desconfiou de alguma coisa.
E ameaçou chamar a polícia. Ora, ele já não se lembrava muito bem do que tinha
acontecido a seguir, mas parecia-lhe, parecia-lhe, que no meio daquela
confusão toda, ele tinha dado um valente encontrão ao industrial. Acontecia que
estavam num terceiro andar e, como tal, o homem tinha caído dessa altura. O
Tozé depressa tomou o controle da situação: disse para o Afonso fugir, que ele
próprio ficava e chamava a ambulância. E o Afonso que não se preocupasse, que
ele ia ficar de bico fechado, porque afinal de contas, o negócio também era
dele e, sendo assim, ele também estava implicado. Quanto ao resto, não havia
problema: o Tozé era amigo do industrial, e diria que o outro se tinha
desequilibrado. Depois, olha, depois logo se via. Só que o pior aconteceu: o
gajo, o industrial, bateu a bota. Se calhar não resistiu aos ferimentos. Sim,
porque ele tinha quase a certeza de ter visto o industrial a olhar para
ele com os olhos bem vivos e bem abertos... Mas se calhar também tinha imaginado isso... O que interessava era que o
industrial tinha morrido. Devido à queda. Queda essa que tinha um responsável.
Como, que história era aquela?... A Eunice não
tinha ouvido bem, não podia.
Ouviu, ouviu. Ouviu até muito bem. Ele era o
responsável pela morte de um homem. Ele mesmo. Afonso.
O meu menino.
O quê?... Ele, ele, o marido dela, era o
responsável pela morte de um homem?...
Sim, tudo assim o levava a crer. Ele não o tinha
feito de propósito, é claro, mas mesmo assim...
Não, não podia ser... O homem com quem ela dormia tinha
morto... Era, era uma assassino!
Assassino?!... Calminha aí...
Assassino!... Sim, sim, ele era um assassino...
Qual assassino, qual carapuça!... E, por favor, ela
que falasse mais baixo...
Assassino! Assassino!
Ó pá, ela que se calasse, por tudo o que era mais
sagrado... Mas, mas, aonde é que ela ia?... Ei, ei,... Nice! Nice!... Eunice!
Ela fugia, e enquanto isso, veio-me à memória
aquela minha antipatia para com ela, entretanto já quase esquecida. Mas eu
tinha razão: os meus instintos não me tinham enganado.
Agora, era comigo.
Assassino ou não, ele era ainda o meu menino.
E cabia-me a mim continuar a velar pela sua
segurança.
Como sempre o tinha feito.
Eu. O seu castelo. A sua fortaleza.
A sua casa.
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